23 novembro 2008

"Navegar é preciso, viver não é preciso." Caetano Veloso



Cansaço.
Tanto cansaço!
Cansaço pela contínua e repetida perplexidade perante os sofás vazios; perante o silêncio que substituiu a música e os teus sons; perante o lugar de alguém que se ausentou, à mesa; perante o cheiro, o teu cheiro, que se mantém no quarto que ficou vago; perante a ausência do movimento da tua silhueta ao descer as escadas à hora do jantar; perante um bengaleiro onde já não estão os teus Kispos ou a tua sacola de pôr a tiracolo; perante o espaço vazio da secretária, onde pousavas a agenda de cada ano; perante o quadro magnético da parede, onde não há mais registos de espectáculos.
Lá só escrevi - 16 de outubro "Mamã, vamos dançar?"
Mas a letra é a minha.
A forma da tua letra, tenho-a desenhada na mente.
Letra vincada, letra um pouco torta, um pouco infantil, letra de quem escreve com a mão esquerda.
Embora tocasse guitarra com a direita.
Numa constante dualidade - ingenuidade e auto-confiança.
Ando cansada de levar cada dia ao fim do dia.
E não me revejo na que vejo que era antes.
No tempo de lá, a outra era uma fera que lutava, do nascer ao pôr do sol, pela sua cria. Decidida, silenciosa, risonha até ao escuro da noite.
Esta,
a que acorda perplexa para dureza da vida,
é um animal ferido de morte
que se esconde em si,
que se protege dos olhares, para lamber as feridas.
Até ao amanhecer.
Onde, antes, era o anoitecer.





Fui envenenado

Fui envenenado pela dor obscura do Futuro,
Eu sabia já que algo se preparava contra o meu corpo,

agora torço-me de agonia

nos versos deste poema.

Esta é a terra outrora fértil que os meus dedos dilaceram.

Os meus lábios são feitos desta terra,

são lama quente.

Vou partir pelo teu rosto para mais longe.

A minha fome é ter-te olhado

e estar cego. Agora eu sei que te abres para o fogo

do relâmpago.

Tenho a convicção dos temporais.

já não sei nem o que digo nem o que isso importa.
Guia
dos meus cabelos rasos, da melancolia,
da vida efémera dos gestos.
Nesse dia fui melhor actor do que a minha sinceridade.


A cesura enerva-me no estômago.

Cortei de manhã as pontas dos dedos mas sei já que

elas crescerão de novo a proteger as unhas.

Talvez a vida seja estranha.

talvez a vida seja simples,

talvez a vida seja outra vida.


A linha branca da Beleza é a minha atitude que se transforma.

A violência do sono sobe

sobre o meu conhecimento.


Fui algures um horizonte na secessão das pálpebras.

Nuno Júdice

4 comentários:

Anónimo disse...

O que o David nos faz

"Mi corazón me recuerda que he de llorar
por el tiempo que se ha ido, por el que se va." Jaime Sabines

Há muitas coisas que a Isabel nos tem contado sobre o seu filho, outras que temos entendido com o coração.

Ceder a passagem a quem está em dificuldades, falar com voz suave, evitar os buracos,luzes indirectas, ouvir música, boa música.

Aqui em casa também ouvimos boa música, sobretudo clássica mas eu também fujo para a música do mundo, outras línguas outras expressões.

E foi assim no tédio desta 2º feira cinzenta e mais fria em que eu procurava presentes para oferecer no Natal, a pensar que há tanta coisa inútil neste mundo, tanto objecto, tanto supérfluo, tanto lixo, ali na Fnac exactamente em frente das prateleiras com músicas da Lila Downs, que me lembrei do David.

E comprei alguns cds para dar, para que se multipliquem as coisas boas, como uma cadeia que não pára.

Manuela Baptista

Anónimo disse...

NAVEGAR

Como navegar sem viver

Como viver sem navegar

Pois se não é respirar

O flutuar sem o querer

-.-

Flutuar é um suspenso no ar

É um deixar-se morrer

Sem dinâmica interior

Ao arrasto da exterior

-.-

Já navegar

É resistência

É enfoque

Direcção

-.-

Como navegar sem ter razão

Alguma dela e comunhão

-.-

Aprofundar neste chão

Emergir com coração

Despontar e ler os céus

O horizonte sem véus

-.-

Oh navegar é preciso

-.-

Como o viver do narciso

Sem se cegar quando à tona

Como nenúfar sem siso

Se afunda como uma lona

-.-

Jaime Latino Ferreira
Estoril, 26 de Novembro de 2008

Olga Almeida disse...

Olá!
É assim a influência que o David tem em nós... Sempre que vou comprar alguma coisa ou tomo alguma decisão, "pergunto" sempre ao David se gosta, se concorda... Claro que a resposta não a ouço, mas tento sentir e imaginar o que ele diria ou pensaria.
Sinto-me orgulhosa sempre que faço alguma coisa com que ele concordaria, mas triste em não poder partilhar com ele...
É a vida! Dizem as pessoas.
Beijinhos

Ana Cristina disse...

Manela

Também vocês têem bom gosto em termos musicais e literários e não só.
Não esqueço a maravilhosa sala onde estivemos à conversa com a Lili antes de tomarmos um chá acompanhado das "pratas" da Garrett.

A sua calma e serenidade, que sempre apreciei em termos profissionais e que equilibravam o meu ímpeto e energia, continuam a fazer-se sentir nas palavras que aqui escreve.

Tenho a certeza de que vocês os dois já gostam muito do David e continuarão sempre a conhecê-lo cada vez melhor através da minha irmã.
Lá em casa o bom gosto é de excelência. Tenho tanto a aprender com eles...O que o David nos continua a fazer!

O Outono arrefeceu mas os dias continuam luminosos.
Hoje recebi em casa os candeeiros que encomendei numa fábrica aqui em Gaia. Será que o David os aprovaria?
"Nini,se virares o foco de luz para a parede ou para o tecto, terás maior ângulo de iluminação e maior grau de claridade"-disse-me ele quando passou por Cascais em Julho de 2007, referindo-se ao meu candeeiro de secretária no sótão.

A falta que o David nos faz!

1 beijo com amizade e muito carinho.

Nini