01 novembro 2008

Estranha forma de ausência

A ausência é um estar em mim.
(Drummond)



Não será esta ausência a do próprio perante os outros?
Porque está , somente, em si. Porque se ausentou...

Se falo de ausência, é ao David que me refiro. Eu estou presente ... mesmo quando não estou. Vagueio entre cá e lá.
Entre uns olhitos grandes, alegres e negros e uns olhos grandes, tristes e verdes.
Entre as recordações e o aqui.
As recordações são sempre más, de maior ou menor angústia.
As boas recordações são as mais difíceis; torna-se ainda mais penosa a ausência do meu rapazinho. Fazem-me sentir ainda mais o que perdi.

Por estranho que possa parecer, prefiro as recordações mais tristes porque são as que me "dizem" que tudo se passou na hora certa.
Se é que, alguma vez, se possa dizer que há (houve) uma hora certa para a morte de um filho.
No entanto, é isso que se passa.
É o que continuo a fazer...

Mesmo agora, é só o David que me interessa; o continuar a ver, através dessas recordações mais tristes, que o David não se apercebeu.
E que foi bom para ele; ao menos isso, na morte; já que, na vida, sofreu.

Naqueles dias (ontem?), apesar do não estar em mim (ou estar exclusivamente para ele), da dor das entranhas, do terror pânico, da certeza de que o nosso tempo a dois corria e não voltaria mais - o adormecimento que lhe vi; o lento afastar-se de mim que presenciei, os últimos sorrisos que partilhei, sob aquele estranho e quente sol de Outubro, dizem-me que foi bom assim.
Foi bom para o David que fosse assim.
Tento imaginar (ainda agora, aqui) que o David acordou daquele sono prolongado, algures, onde os nossos sorrisos, as nossas conversas a dois continuam para ele.
Onde há palcos e luzes e música e amizade e cultura.
Aqui, resisto sem ele.
Mas eu não conto.
Por isso, sinto que as piores recordações são as que me ajudam a suportar a ausência dele, porque foi o melhor para ele.
Não para mim...
Nunca para mim ... mas eu não conto.
Nem agora a minha saudade conta.
Só conta que tenha sido melhor para o meu rapazinho.
Mesmo não existindo ele já, nem aqui, nem agora.
Existe dentro de mim, numa certa forma de ausência estranha.
Mas eu não conto...

2 comentários:

Anónimo disse...

"Eu canto para ti o mês onde começa a mágoa

E um coração poisado sobre a tua ausência

Eu canto um mês com lágrimas e Sol o grave mês

Em que os mortos amados
batem à porta do poema"

Manuel Alegre

Anónimo disse...

ALEGRIA

Canto eu a lágrima que magoa

A pulsação vazia do ocaso

Canto a alegria que me doa

De saber-te em mim neste chão raso

Na folha de um poema ao acaso

Jaime Latino Ferreira
Estoril, 4 de Novembro de 2008