10 setembro 2008

Uma lágrima pesada



Olho para os dias como se tivessem existência física e eu estivesse fora deles.
Impossível não me fixar num indício, então despercebido.
Impossível não permitir que o medo me suba na garganta.
Porque o medo, conheço-o agora.
Transportei-o comigo, durante muito tempo mas não me permitia senti-lo ou deixar-me conduzir por ele.
Sentia-o sempre latente, mas havia algo mais forte que se impunha ou me impunha... Já não sei.
Era a necessidade de te apoiar, de te mostrar que era forte, que não acreditava que estivéssemos condenados.
Sabia que verias nos meus olhos o medo, se o deixasse instalar-se. Por isso, chorava às escondidas, sempre que me era permitido. Pela noite dentro, quando já dormias.
Olho para os dias. Estou cá mas vejo-me lá. Vejo-te debruçado e de joelhos dobrados sobre o gradeamento da varanda na rua Vicenz Martorell.
Já os teus olhos traziam o tom esverdeado da icterícia. Já o teu pensar era mais lento. Já o teu corpo cansado pedia repouso, cada vez mais repouso, no sofá.
Mas a curiosidade ainda te levava à varanda; querias ver o movimento na pracinha, em baixo.
Há um ano, disseram-nos, abruptamente, que o ensaio não estava a surtir o efeito desejado. Não te ofereceram mais nada, apesar de, muitas vezes, terem dito que se aquele ensaio falhasse, havia outras coisas.
E isso sossegava-nos.
Não devia ter sido assim.
Não devias ter deitado aquela lenta lágrima.
Pesam-me tanto algumas das lágrimas que deitaste, apesar da coragem e determinação.
Aquela lágrima queima.
Ainda bem que os males do fígado esbatem a percepção da realidade.
Logo ali, destroçada por dentro, mas sem vacilar, sem hesitação, tracei os passos a seguir.
O médico ficara calado, depois de te dizer que não havia, ali, nada a fazer. Os meus olhos gritavam-lhe por socorro
Mas eu sorria-te. Sei que te afagava a mão para que não tivesses medo.
Iríamos para Paris. Paris, de novo. Paris ficara em aberto, para mais tarde.
Só, nessa altura, o médico percebeu que não se pode destruir, assim, uma esperança. Só, então, ele colaborou comigo e te serenou.
E tu sossegaste. Paris seria o nosso próximo cais.
Eu calava a desesperança que se ia instalando.
Mas fazia projectos.
Íamos descansar uns dias, a Moledo. O Sérgio, a Carla e o Manel iriam connosco. Ias estar com a tua Olga.
Mas aquela lágrima que deitaste queima-me.
Faz hoje um ano.
Olho os dias como se tivessem existência própria, fora de mim e de ti.

3 comentários:

Anónimo disse...

Meu Deus, tenho vindo aqui ler o teu desespero e não consigo comentar, porque nem consigo imaginar a dor.
Sou mãe, tive muito perto de perder o meu filho, e a dor já era tanta, que nem sei o que sentiria se isso me acontece se.
Desta vez, não quis ficar calada, porque este texto me fez lembrar, a lágrima que vi no rosto do meu pai, quando nada havia a fazer.
Ainda hoje me doi ao lembra la, porque nada consegui fazer, implorei, supliquei a Deus, ao médico, ao mundo, por uma réstia de esperança... Nada.
Ainda hoje e vai fazer 3 anos, me lembro da lágrima, do olhar de desespero.
Desculpe o meu desabafo, mas tocou me em especial este texto.
Beijos grandes, sei que essa não vai passar, não passa nunca a dor de perder um filho, mas espero que encontre um conforto, saber que ele olha por si, todos os dias, apesar de não o ver.
Esta é a minha esperança.
Vanda

Anónimo disse...

Essa única lágrima deve ter-lhe inundado o coração! Acreditar, acreditar, acreditar, até ao último suspiro. A isso chama-se AMOR.
Um beijinho,
MM

A Professorinha disse...

A minha Mãe morreu com cancro vai fazer um ano em Novembro. Sempre que venho aqui e a leio, choro. Revejo aqui o que se passou com a minha Mãe. Não tenho palavras para a consolar porque eu mesma não tenho consolo para mim...

A sua luta foi e é a minha, embora eu seja filha e a senhora seja Mãe.