30 setembro 2008



INCENSO


Que deixem os meus olhos de chorar

Que não me esqueço

Nem a memória

Me atraiçoa do anverso

Por não se esquecer de voltar

De olhar

E cresce numa estória

Mesmo se não a contar

Devagar

Com a calma do andar

Porque eu lhe peço

Que mesmo no silêncio

Como incenso

Nunca pare de cantar

-.-

Incenso ou manifestação de louvor ou homenagem, substância queimada em sacrifício, acto de acender, dar, produzir luz.

-.-

Jaime Latino Ferreira
Estoril, 30 de Setembro de 2008


...

E que eu sinta neste Azul intenso

A imensidão do teu olhar

MB


O olhar do David era intenso, cristalino e transparente como a água azul do mar que rodeava Creta, o berço de Zeus.
.......
E, assim, se encerra mais um capítulo da nossa viagem de 18 meses... donde só eu regressei.
Só.
Amanhã, começa Outubro,...mês de lágrimas, mês de desesperança, mês de sol a despedir-se, mês de abraços fingidamente não desesperados, mês de sorrisos feitos de medos, mês da terra do "nunca mais", mês do país do "faz de conta"...
mês de projectos, para sempre, adiados
mês do meu enlouquecer
mês dum sono sem retorno
mês de
"Mamã, vamos dançar?"

29 setembro 2008

azul


Creta, o rapazinho da direita

Sabes, David, vou ver o teu mar azul.
O teu mar de Creta, as oliveiras milenares e Poseidon.
É estranha esta sensação de ir a sítios da tua eleição.
Dizias que lá irias muitas vezes.
E levarias a Olga.
É estranho e há um aperto no peito...já de saudades.
(Saudades de quê, se não estás aqui?)
Por não poderes ir.
Por não veres Zeus, lá no alto do monte.
Por não poderes relaxar, à noite, num bar à beira da água sempre quente.
Por saber que, desta vez, não trago um CD de bouzuki (?).
Desta vez, não trago mel, ... nem Ouzo.
Desta vez, não trago o azul do mar Egeu nos olhos.
Os meus olhos cansados estão repletos do azul das lágrimas da saudade.



28 setembro 2008

Caminha, Moledo, David...



Eãm Lebasi (Mãe Isabel)

Nunca tive jeito para frases poéticas,
não domino o estilo,
nem a rima, nem o verso,
nem o falar do amor,
da alegria,
da injustiça
ou guerras.

Mas sinto.
Eu sou assim
sem jeito para escrever.
Penso e repenso.
Mas escrever...
Nada.
A mente fica bloqueada e a mão paralisada.

David Sobral
(prenda de anos à mãe)



CAMINHA
Papagaios no areal de Moledo

Escura
A silhueta

Banhada pelas costas da alvorada

Da luz que a acaricia na jornada

Caminha

Esguia

Posta à prova porque é dura

Mansa

E cria

O que na vida inteira a alivia

Olha a calçada

Irónica sorri

Da sorte amarga

E encontra sem dobrar

O olhar eterno

Cor amada



Interpretação livre de uma fotografia de David Sobral
Caminha / Outubro de 2007


Jaime Latino Ferreira
Estoril, 28 de Setembro de 2008

Outra carta


Outubro/07 Miradouro, Caminha


Sim, o tempo é como lava. Queima e arrasta...
Sim, eu sei que não existes.
Mas esta é a única forma que encontrei de me ir despedindo, nem que leve todo o meu tempo de existir.
Não é muito tempo, apenas o tempo de te recordar um pouco mais intensamente, aqui.
Escrever é a forma de me manter ligada, a ti.
Ainda que por palavras, somente.
Se fosse todo o tempo de pensar, estaria sempre aqui; nem podia ser de outro modo porque a dor é física. Sinto-o no buraco que se me abriu no peito.
Os pensamentos não se materializam; mas as palavras que aqui vejo são reais.
Por isso, escrevo.
Provavelmente, também quererias que me fosse desprendendo.
Mas é cedo.
Quero registar tudo! Se não, de que viverei?
Da memória que me pode atraiçoar?
Não consigo imaginar-me a viver sem este cantinho.
Preciso dele...
Olho para as fotografias e até elas parecem afastar-se já; como se não fizessem parte dum tempo longínquo ou tudo tivesse sido um sonho de que fui expulsa.
Sei que partiste...
Uns dias, consigo convencer-me de que é isto a vida e que não podia querer prender-te mais.
Começaria a ser doloroso.
Outros dias, toda essa teoria que construo, para meu próprio amparo, se desmorona e fico louca dentro deste silêncio onde me escondi.
Triste sina! Ter como consolo o menor dos males - partires como se adormecesses.
É Setembro, já no fim.
Em Outubro, faz-se escuro!


O Mar

Antes que o sonho (ou o terror) tecesse
Mitologias e cosmogonias
Antes que o tempo se cunhasse em dias
O mar, o sempre mar, já estava e era
Quem é o mar? Quem é aquele violento
E antigo ser que rói os pilares
Da terra e é um e muitos mares
E abismo e esplendor e acaso e vento?
Quem para ele olhar vê-o pela primeira vez
Sempre.
Com o assombro que as coisas
Elementares deixam, as belas
Tardes, a lua, o fogo de uma fogueira
Quem é o mar, quem sou?
Sabê-lo-ei no dia
Que se segue à agonia.

Jorge Luís Borges

27 setembro 2008

Da varanda



Ao som da música do Ali farka Toure, sentada na varanda, onde tantas vezes dormiste uma sesta, procuro imagens familiares.
Vejo o prado, acabado de cortar e a cheirar a frescura. As ovelhas começam a retirar-se. As vacas ainda pastam.
Está tudo por aqui, mas não lhes encontro o encanto de antes...
Viver na cidade, com paisagem de campo.
Tu gostavas...
Nós, também.
Agora, não sinto.
Nem o mundo lá fora deixa de me parecer sem sentido.
Chega-me, apenas, como reflexo da memória de uma certa melancolia.
Raramente me lembro de dias alegres.
No entanto, por onde vou, parece que nada mudou - os jardins são os mesmos, as ruas conduzem aos mesmos sítios, pede-se um café e, logo, o trazem... ninguém vê as marcas das minhas lágrimas secas.
O mundo continua a sua rota espacial, deixou-te para trás... e vou querendo ficar um pouco mais contigo.
Aqui, silenciosamente, em frente ao prado.
Onde adormecias o cansaço acumulado.
E eu zelava...
Tudo ia melhorar.





"Imagina antes que nós
Nos viramos de lado para dormir:
Aqueles que um ao outro se guardam

Em vida, nunca serão apartados"

John Donne

26 setembro 2008




O meu mundo é feito de gestos inúteis.

Moram em mim caminhos parados no tempo.
São caminhos de medo do que passou e que regressa, a cada instante
Moram em mim mil razões para viver, já mortas, poucos perdões e muitas condenações.
Relembro gestos de desamparo. Gestos doridos.
A saudade revela-me todos os segredos, permite-me situar cada gesto, cada passo, cada vitória, cada derrota e outra derrota.
Cada fim que se repete...e repete.
Cruelmente, desvendam-se todas as alegrias que não passaram de embrião.
Persigo-as, em cada esquina do tempo, ... o que já passou …
Continuo sem compreender o que nos afastou.



Quem se importa?


Quem se importa, quem se importa?
Se não tiveres sucesso
Quem se importa, quem se importa?

Se não viveres sequer

Quem se importa, quem se importa?

Se a tua mãe morrer

Quem se importa, quem se importa?

Se o sol não brilhar

Quem se importa, quem se importa?

Se alguns vão morrer

Quem se importa, quem se importa?

Se eles não têm ajuda

Quem se importa, quem se importa?

Se eles não têm abrigo

Quem se importa, quem se importa?

Se dormem quando caminhamos


Quem se importa?
Quem se importa?

Quem se importa, quem se importa?

Se não tivermos futuro

Quem se importa, quem se importa?

Se não chegar a paz

Quem se importa, quem se importa?
Se o nuclear vier
Quem se importa, quem se importa?


Caso alguém se importe...
David Sobral

25 setembro 2008

A eternidade, se possível!



Mais um dia em busca de um tempo a que já não tínhamos direito...
Em Paris, uma greve de taxistas.
O David cansado, a arrastar-se atrás...devagarinho, devagarinho.
Mas não triste! Apenas mais sonolento, apenas mais lento, apenas mais sobre si...
Conversava, de vez em quando, ...
Limitava-se a seguir-nos, devagarinho, cada vez mais devagarinho...
Pedia, de vez em quando, para pararmos, para se encostar um pouco ou aninhar-se porque os joelhos estavam cansados.
É assim que o vejo.
Não me vejo a pensar, só ando ou páro ou o ajudo.
Sem táxi, restavam os transportes públicos.
O hotel era próximo da paragem do autocarro.
Mais um esforço. Mais cansaço.
Descanso por um bocadinho.
Uma refeição improvisada no bar do hotel.
Fim da greve.
Ida de táxi para o hospital Paul Brousse.
Sala de espera, sala de espera, sala de espera.
Chamam-nos.
Avançamos. Avançamos determinados, sem cansaço, agora
O David estende a mão ao Prof. Machôver. Um sorriso retribuído.
O prof. Machôver reconhece o David.
"Alors, David, comment tu vas?" "Très bien, merci."

O David olha para mim e para o Manel, um de cada lado.
Estamos aqui. Contigo, com a tua força.
Sorrimos uns para os outros.
O prof. vê exames, PETs, TACs,...
Recomenda um tratamento...ligeiramente diferente.
É preciso um compasso de espera para que o fígado recupere.
Receita uma dose mais elevada para algumas dores de que o David ainda se queixa (a mim, não a ele).
Diz que não há vantagem nenhuma em ter dores.
Completamente desnecessário...
Diz que vai correr bem.
O David sorri e conversam de outras coisas.
Música, cinema...sobretudo jazz.
O David levou um CD do Bernardo Sassetti.
Oferece-o ao prof. que lhe pergunta como, sendo tão jovem, revela tanta cultura musical e cinematográfica.
O David responde, indicando o Manel.
"É ele o responsável", diz.
Conversa-se mais um bocadinho.
Saímos, temos a alma mais leve.
Paris, um restaurante escolhido pelo David.
Leva a página da net para mostrar ao taxista, que nos deixa à porta.
Moules... Mais moules.
Comeu bem. Soube-lhe bem. Estamos bem.
Hotel.
Dormir. Dormir, sempre.
Mas o pêndulo conta o tempo.
Podíamos dormir, para sempre...
Temos que regressar...
Para que nos dêem um pouco mais de tempo.
A eternidade, se possível!
Lado a lado...




Desde que o David morreu, prometi a mim própria que o iria dar a conhecer.
A vida dele foi demasiado curta para que fosse, verdadeiramente, conhecido e reconhecido.
Muito poucos sabiam como era, de facto, o David porque ele transformava-se, conforme a situação exigia...
O sentido de humor
A solidariedade
A intolerância perante injustiças
O gosto pela vida "na estrada"
O grande profissionalismo no trabalho
Às vezes, a tristeza por se sentir incompreendido
Às vezes, a ansiedade perante o futuro
Às vezes, o gosto pela solidão
Sempre, a paixão pela música
Sempre, o turismo da gastronomia
Às vezes, a revolta pelas políticas culturais
Sempre, uma grande sensibilidade
Sempre, o gosto pela pesquisa
Sempre, o gosto por partilhar conhecimentos
Sempre, a inovação
Às vezes, o desencanto
Mas...sempre, um beijo de "boa noite"

Eu tenho o dever de o revelar...
E de revelar o carinho que muitos lhe dedicavam.
Não quero que se percam as despedidas.
Vão ficando por aqui.


David Deixas muitas saudades,mesmo aos que não eram do teu círculo mais íntimo. Prometo-te que farei o que puder para apoiar a tua mãe coragem.
Até sempre.
Alda Sousa

Amigo David

Em nome do Bernardo Sassetti, do Mário Laginha, da Maria João e de toda a equipa da ONC, aqui, deixamos o nosso obrigado pelos momentos que partilhámos em tantos concertos. Encontramo-nos um dia destes para outros projectos e tantos sonhos.

Com Amor de todos nós
. Olga Carneiro




Foi um prazer imenso e sem fim poder conhecer-te, David. Por toda a vida que tiveste, é uma pena perder-te. Obrigado por tudo o que fizeste por mim!! Para sempre no meu coração, Grande David Sobral. Ernesto

Querido David!
Alguém como tu vive para sempre... e assim será.
No meu coração, todos os dias serão de festa com a tua adorável presença.
Tenho tantas saudades...
Nunca vou esquecer que "cada degrau tem a marca do sonho do homem..."
Quero encontrar-te no próximo degrau.

Gosto tanto de ti!
Gabi



Tanta luz, tanto amor à Cultura.
David, estarás sempre connosco.

Mª José Graf - Círculo Portuense de Ópera

24 setembro 2008

Um certo tom de voz



É , talvez, a segunda vez que me dirijo a alguém, nesta Casa que ostenta o meu nome.
Na porta desta casa virtual, está, virtualmente, escrito "Todos são bem-vindos."
E são!
Mas, hoje, dirijo-me à Manuela Baptista.
Queria dizer que só a conheço de vista, por fotografia, e pelas mensagens curtas que me manda.
Hoje, alongou-se um pouco mais e fez bem.


Porque gostei do que escreveu.
Porque não me diz que vai passar; percebeu que isso não acontecerá.
Porque sabe que esta minha dor é única e minha.
Porque não me diz que tenha fé; percebeu que não tenho.
Porque me diz aquilo que digo a mim própria.
Porque descobriu que sou capaz de continuar a viver e a dedicar-me a outros e outras coisas.
Porque viu que trarei sempre o meu rapazinho comigo.
Porque sabe que preciso de continuar a chorar.
Porque sabe que a saudade não vai passar.
Porque percebeu que é este o meu caminho.
Porque viu que nesse caminho a percorrer, tenho por companhia a coragem e o sorriso do David.


Porque me escreveu como se me falasse; com voz serena e pausada.
Sem demonstrar pena, comiseração ou culpa por existir ...
Nunca lhe ouvi a voz.
Mas foi assim que a imaginei.
Obrigada
Isabel

23 setembro 2008

Desencontro


Receio andar desencontrada de mim própria.
Como é não sei, mas é isso que sinto.
Como se este corpo não me pertencesse.
Como se as tonturas, provocadas pelo medo, regressassem como se o dia do medo voltasse a ser cada dia de hoje.
Como se a mão que aqui escreve fosse a de alguém que conta uma história triste
E não eu, uma das personagens da história.
Porque a história que conto encerrou-se, com as personagens lá dentro.
Se não, não haveria história nem personagens.
Então como estou eu, aqui?
Com o mesmo medo e as mesmas lágrimas daquela personagem, encerrada na história daquele livro que se fechou?
E onde um filho se quedou?

22 setembro 2008



Ando cheia até aos olhos de saudades e saudades.
Que, cada vez mais, me desmembram. Não lhes posso fugir...
Não tenho, já, a mais pequena dúvida de que vou ficar, assim, repartida em tempos que se sobrepoem e nunca se misturam.
É no fundo, lá bem no fundo deste vertiginoso abismo, entre dois tempos, que escorre o regato da minha tristeza.
Entre as encostas dos tempos vou construir uma ponte levadiça.
Atravessá-la-ei, sozinha, as vezes que eu quiser.
Não serão necessárias chaves nem ferrolho.
Só as nossas palavras mágicas me franquearão a travessia.
.......
Sei que, com o tempo, cada vez mais, terás pertencido a outro tempo.
Chegará a altura em que o teu tempo se terá perdido na flecha do tempo que tudo leva e nada devolve.
Dizem que a lei da morte é a lei do esquecimento.
Não será, mas...para já...
Quero confundir-me por entre as gentes; encontrar caras anónimas; misturar-me entre desconhecidos.
Não há de que falar...
Nada tenho a declarar...
Se tudo continua a parecer-me um sonho.
E tenho tanto medo de acordar.



David

Vou escrever as palavras que o avô não conseguiu escrever "...que foste um bom neto, um grande amigo e que tiveste a força que todos nós não tivemos..."
O teu avô Xico
(pela Nini)

21 setembro 2008

Ao David



Chegam mensagens.
Palavras de apoio.
Respostas aos poemas da tua juventude.
Sempre acreditaste na bondade das pessoas.



“David”

“David”

Hoje li um teu poema
Onde deixas quase certezas, quase dúvidas
Sobre a nossa condição humana
Sobre a nossa vulnerabilidade de vida
E dizes que somos todos cadáveres…
Eu acrescento
Somos todos cadáveres adiados…

Hoje, David,
Aí , nessa dimensão onde decerto te encontras,
Acredito
Que já encontraste respostas.
Já sabes que afinal somos sempre almas
Somos sempre espírito
E que o nosso corpo, esse sim
Apenas serve para alojar temporariamente
O que efectivamente é imortal:
- O Espírito|
Nascemos, vivemos, aprendemos como na escola
E, voltamos quando o tempo determinado cessou.
Regressamos mais esclarecidos
Mas para aprendermos mais. Cuidar de outros
Numa enorme roda de vida/morte até sermos dignos de permanecermos
Noutras dimensões,
E nos fundirmos num universo de grande Luz.
Acredito David, sem te ter conhecido nesta vida
Que és um espírito superior
Chamado para destino espiritualmente mais abrangente.
A tua família chora a tua ausência
Inconsolável!
Envia-lhes, se puderes, consolo,
Se isso não vai impedir o conhecimento,
O esclarecimento
A que só o sofrimento por vezes conduz.

Sou amiga da tua tia Nini,
Sou tua amiga.
Fica em Paz! Fica com a LUZ!


Hirondina Pinto Júdice

Passado




Tudo me parece um sonho, porque não regressas.
...
Mas olhos do meu neto sorriem.
E rendo-me ao sorriso dele.
Entre nós não há passado.
Aquele passado invisível, onde me detenho, cada dia.



Rubaiyat
"Ao gozo segue a dor e a dor a esta

Ora o vinho bebemos porque é festa
Ora o vinho bebemos porque há dor
Mas de um e de outro vinho nada resta!"


Fernando Pessoa


18 setembro 2008

11 meses, não mais...



Ainda é dia 18.
Não vim aqui todo o dia, embora o meu dia, de longe, tivesse decorrido aqui, abrindo portas, fechando janelas, correndo cortinas, desvendando cantinhos secretos.
Passeei-me, sonâmbula, pela escola.
Talvez, tenha, propositadamente, marcado várias tarefas, para hoje. Para não pensar, para não falar... ou falar demais.
Nada de muito cansativo.
No entanto, estou, aqui, relativamente exausta... relativamente adormecida para o que me rodeia...ausente...mas, completamente, desperta para cada segundo que vivi (como, já não sei!) no quase Outono que passou.
Não me tinha acontecido sentir-me como que violada como mãe; nem sei bem o que quererei dizer com isto...
Mas é esta a única forma, não pensada nem reflectida, de dizer como me sinto (talvez!)
Há uma dor lancinante que não dói e que não é a de Camões, porque a causa da dor "dele" existe.
Há um fogo que queima mas não arde porque é cinza.
Ainda é dia 18.
Há um ano, ... uma amiga diz-me que enviei um mail onde dizia “…acho que chegámos ao fim da linha". Para logo acrescentar “ A não ser que em Paris…”
Nada veio de Paris, além duma mentira piedosa que nos permitiu olharmos uns para os outros como se tivéssemos a eternidade pela frente.
Foi bom...
A luz de Paris e as luzes do David apagaram-se atrás da cortina que desceu sobre o palco.
O palco está vazio; fiquei eu, sentada, quieta, num cantinho.
Persigo uma certa luz; não quero perder-lhe o rasto.


Á(r)VO(re)

Escreve-lhe secando a seiva das raízes

Com lágrimas de sal

E sem juízes

Mantendo-se de pé

No imenso vale

É o que é

Árvore frondosa

Falda

Com sopé

-.-

Dedicado à avó Arminda

-.-

Jaime Latino Ferreira

Estoril, 18 de Setembro de 2008

17 setembro 2008

Outras despedidas...



Mensagem deixada pela avó, a 10 Outubro 2007

David
Foste o melhor e o maior neto do mundo. Nunca vou esquecer-te, meu querido e adorado David. Em todos os dias da minha vida, vou amar-te sempre mais e mais. Deixas-me uma imensa saudade e sinto-te em mim. Foste uma lição de vida. Foste generoso e bom. Sofreste com as injustiças do mundo. A todos te deste com amor e carinho.
Merecias mais, muito mais do que o nosso grande amor.
Obrigada, meu neto querido, pelo teu meigo e terno sorriso.
Obrigada pela doçura do teu olhar, do olhar desses teus "olhos claros, lindos e cheios de graça".
Obrigada, pela ternura que deixaste no meu coração.
Amo-te, amo-te e amar-te-ei eternamente.

"E eu que já penso na suavidade
Do tempo que não vai voltar
Que não vai passar
Olho o espaço (o mar) chorando de saudade
Dos teus olhos claros cheios de graça!..."

Um saudoso beijo e um carinho
da tua avó Arminda

16 setembro 2008

17...



Quase dia 18...
Novamente 18.
Sinto-me em contagem decrescente ou será crescente?
O vazio cresce mas, estranhamente, não está vazio.
Aumenta na proporção do espaço de que necessita para albergar a saudade, o que não sei dizer e o silêncio.
O silêncio também não é, verdadeiramente, silêncio; é a caixinha das lágrimas que não se vêem. É lá que as guardo...
De vez em quando, abro-a e esvazio-a até que seque, à luz da Lua e ao ritmo dos dias de calendários passados, onde, também, revivo passo a passo.
Não há retornos nesta estrada que percorri...



Arrastar-te

Queria

Pelos segredos das noites

Pela escuridão que tememos

Pelo vazio que não podemos suportar
Com o absurdo das nossas visões.
Estou alegremente condenado a ti.

Os homens são todos iguais,
Todos em busca do luxo e da fama.
Está tudo perdido,

Não há nada a fazer

A não ser

Arrastar-te

Arrastar-te alegremente.


Somos vulneráveis

Vivemos no arame

Todos bastante instáveis.


Vulnerabilidade é o nosso lamento.

A sorte está do nosso lado
,
Mas ninguém pode dizer “Não vou morrer amanhã”!

A estupidez deixa-me doente,

Estamos condenados à liberdade.

Somos um bando de cadáveres,

Não há Deus à espera p'ra t' escolher.


Gostava de ser como todos vós,

Ser indiferente!


Mas a minha vida é demasiado intensa


DAVID SOBRAL

15 setembro 2008

Aqui.



Aqui?
Sim, eu sei que não existes.
Sei que fiquei, aqui.
Sei que não devia continuar a viver, fingindo que estás aqui.
Sei que muitos receiam que eu viva demais, aqui.
Mas aqui, é também a minha casa.
Uma parte de mim é aqui que habita.
Quero continuar um pouco mais, aqui.
Manter a porta aberta e deixar entrar raios de sol e sombra, vindos do passado.
A única forma de aguentar a saudade é vindo, aqui.
É dizendo, aqui, que nada é justo.
Que, aqui, nada de mal me pode voltar a acontecer.
Porque, aqui, me desfaço de ilusões que só podem magoar.
É chorando, aqui, que me dispo da amargura que carrego por aí.
É daqui que levo alguma leveza que me permite olhar de frente, cada novo dia.
É aqui que recupero as forças que vou perdendo por aí.
Ainda é cedo, demasiado cedo, para sair daqui.
Não esgotei o que quero dizer.
As lágrimas não secaram e é aqui que as guardo.
É aqui que recolho os bocadinhos de mim em ti.
A coragem de que preciso só a encontro aqui.
Ainda, é daqui que invento sonhos e calo as tempestades da saudade.
Talvez, um dia...não venha tanto aqui.
Talvez....
Mas tenho toda a vida, longa ou breve, para me habituar à ideia de que já não estás...nem aqui!






Feliz de quem passou por entre a mágoa

E as paixões da existência tumultuosa,

Inconsciente, como passa a rosa,

E leve como a sombra sobre a água.


Era-te a vida um sonho. Indefinido.

E ténue, mas suave e transparente...

Acordaste, sorriste... e vagamente

Continuaste o sonho interrompido.


Antero de Quental

14 setembro 2008

Em espiral




Regressos contínuos...
Ando em busca de um tempo perdido mas presente.
Os aviões passam, lá no alto.
Todos regressam de Barcelona. Lá dentro, vimos nós, de olhos vazios e mãos inertes.
Pedimos que nos seja concedido tempo. Queremos mais um bocadinho de tempo.
Queremos respirar o sol de Moledo.
Queremos ver o mar.
Queremos poder, ainda, ter um brilhozinho de esperança, no olhar
Ainda é cedo para nos despedirmos de nós.
Ainda é cedo para fecharmos o coração.
Ainda é cedo para encerrar o livro e deixar folhas em branco.
É cedo para o silêncio.
Mesmo inundado de lágrimas, o tempo é sempre tempo de mais um olhar terno.
De mais um apertar de mãos.
Tenho saudades das tuas mãos; sempre as mãos e o sorriso.
E a música!
Saudade desse tempo inundado de lágrimas...





PENSAMENTOS SOBRE O TEMPO


Vós viveis no tempo e o tempo não conheceis;
Do que sois e onde estais, vós, homens, não sabeis.
O que sabeis é só que num tempo nascestes
E que haveis de partir num tempo, tal viestes.

Mas o que foi o tempo que em si vos deu guarida?
E que será esse Outro que de vós fará nada?
O tempo é tudo e nada, o homem a ele igual;

Mas sobre o tudo e o nada a dúvida é geral.

O tempo morre em si, e de si renasceu.

Um vem de mim e ti, outro és tu e sou eu.

O homem é no tempo, este nele também,

E no entanto o homem, quando ele fica, vai.

O tempo é o que vós sois, vós sois o que o tempo é,
Mas bem menos sois vós que aquilo que o tempo é.

Ah, viesse aquele tempo em que tempo não há,
P'ra nos levar do nosso para os tempos de lá

E a nós de nós mesmos, para podermos ser

Iguais àquele tempo que já deixou de o ser!


PAUL FLEMING (1609-1640)
0 Cardo e a Rosa - Poesia do Barroco Alemão

10 setembro 2008

Há sempre uma qualquer razão




Ao António, gostaria de dizer que a mãe do David agradece os comentários que aqui faz, independentemente das razões.
Razões de mãe, as minhas, como deve calcular.
Razões humanas de solidariedade, as suas.
Razões que me afagam a dor.
Respeitar a minha dor é o que o António faz, quando me escreve, concordando ou não com a minha visão do mundo.
Talvez a sua força consiga que o mundo seja como acredita que será. Seria bom...
Não aprecio quando todos concordam comigo, em tudo.
A razão pode ser a indiferença e eu não aprecio.
Companhia é o que todos aqui me fazem, quando me lêem e comigo pensam no David.
Serão necessárias mais razões, se só essa me basta e me reconforta?
O caminho a percorrer é longo, sinuoso e agreste.
Há tempo para o silêncio.

Uma lágrima pesada



Olho para os dias como se tivessem existência física e eu estivesse fora deles.
Impossível não me fixar num indício, então despercebido.
Impossível não permitir que o medo me suba na garganta.
Porque o medo, conheço-o agora.
Transportei-o comigo, durante muito tempo mas não me permitia senti-lo ou deixar-me conduzir por ele.
Sentia-o sempre latente, mas havia algo mais forte que se impunha ou me impunha... Já não sei.
Era a necessidade de te apoiar, de te mostrar que era forte, que não acreditava que estivéssemos condenados.
Sabia que verias nos meus olhos o medo, se o deixasse instalar-se. Por isso, chorava às escondidas, sempre que me era permitido. Pela noite dentro, quando já dormias.
Olho para os dias. Estou cá mas vejo-me lá. Vejo-te debruçado e de joelhos dobrados sobre o gradeamento da varanda na rua Vicenz Martorell.
Já os teus olhos traziam o tom esverdeado da icterícia. Já o teu pensar era mais lento. Já o teu corpo cansado pedia repouso, cada vez mais repouso, no sofá.
Mas a curiosidade ainda te levava à varanda; querias ver o movimento na pracinha, em baixo.
Há um ano, disseram-nos, abruptamente, que o ensaio não estava a surtir o efeito desejado. Não te ofereceram mais nada, apesar de, muitas vezes, terem dito que se aquele ensaio falhasse, havia outras coisas.
E isso sossegava-nos.
Não devia ter sido assim.
Não devias ter deitado aquela lenta lágrima.
Pesam-me tanto algumas das lágrimas que deitaste, apesar da coragem e determinação.
Aquela lágrima queima.
Ainda bem que os males do fígado esbatem a percepção da realidade.
Logo ali, destroçada por dentro, mas sem vacilar, sem hesitação, tracei os passos a seguir.
O médico ficara calado, depois de te dizer que não havia, ali, nada a fazer. Os meus olhos gritavam-lhe por socorro
Mas eu sorria-te. Sei que te afagava a mão para que não tivesses medo.
Iríamos para Paris. Paris, de novo. Paris ficara em aberto, para mais tarde.
Só, nessa altura, o médico percebeu que não se pode destruir, assim, uma esperança. Só, então, ele colaborou comigo e te serenou.
E tu sossegaste. Paris seria o nosso próximo cais.
Eu calava a desesperança que se ia instalando.
Mas fazia projectos.
Íamos descansar uns dias, a Moledo. O Sérgio, a Carla e o Manel iriam connosco. Ias estar com a tua Olga.
Mas aquela lágrima que deitaste queima-me.
Faz hoje um ano.
Olho os dias como se tivessem existência própria, fora de mim e de ti.

Estranheza!




Estranho.
Há saudades estranhas. Estranhas como as árvores no Outono, quando as folhas caem saudosamente.
Saudades de vidas nunca vividas.
Saudades da mão que me estendias para me sossegar.
Saudades do dia em que juntasse, debaixo da minha asa, filhos e netos.
Saudades dum futuro teimosamente projectado, contra tudo.
Saudades da saudade leve doutros tempos que se vão esfumando lentamente.
Saudades da esperança que sentia, mesmo quando todos ma tiravam.
Esta saudade é uma pedra atada à volta do coração que me puxa para o fundo do rio.

Este mundo assim, da saudade das mães orfãs de filhos, foi uma invenção cruel...



Herança


Eu vim de infinitos caminhos,
e os meus sonhos choveram lúcido pranto
pelo chão.


Quando é que frutifica, nos caminhos infinitos,

essa vida, que era tão viva, tão fecunda,

porque vinha de um coração?


E os que vierem depois,
pelos caminhos infinitos,

do pranto que caiu dos meus olhos passados,

que experiência, ou consolo, ou prémio alcançarão?


Cecília Meireles

08 setembro 2008



Há um amigo, porque é amigo, que tenta ajudar-me.
Acredita noutras vidas, num outro existir,...
E eu sinto-me bem com essa mão estendida.
Mas eu (como o David) acredito no que me rodeia, no que vejo, no que sinto, na mão que aperto, na bondade dos homens.

O David existe? Claro que existe. Existe em mim e em todos, muitos, que dele gostaram e gostam ainda.
Eu sou quem sou porque o David passa por mim, a todo o momento. Atravessou este breve caminho mas deixou uma marca indelével.
Eu sinto, vejo, aprecio as coisas, também pelos olhos do David.
Penso constantemente - "O David gostaria desta música; o David preferiria que fosse assim; o David não concordaria..."
Eu sou eu e sou ele, ao mesmo tempo. Na parte da mãe que é dele.
Há a outra mãe e a recente avó. E seria assim que ele gostaria que eu fosse.
Mas partiu.
E isso dói porque não é aceitável para uma mãe.
Nunca compreenderei que parte da minha vida se perdeu, ali, naquele momento em que a minha mão teve que abandonar a dele; em que me disseram "Agora, tem que sair!"
E o meu menino ali ficou; mas não sozinho!
Nunca o deixaria só.
A minha mão obedeceu e afastou-se.
A força que comandava a mão ficou com ele; continua lá onde quer que ande.

Seria mais feliz se acreditasse em vidas paralelas.
Mesmo assim, seriam desencontradas... E a saudade continuaria.
Acredito que somos matéria, poeira de estrelas que, por um acaso, foram um David e uma Isabel.
E foram felizes!
Agora, tenho a saudade.
Tenho os sons dele, dentro de mim.
Sou sensível à luz porque aprendi com ele.
Aprecio certos sabores porque os descobri com ele.
O David existe, intensamente, dentro de mim, na minha memória.
Onde nada quero que se apague.
É doloroso? É!
De uma forma imensa, indescritível e, às vezes, quase desesperadamente insuportável e louca.
Mas aceito as lágrimas, aceito o peso no peito, aceito o "quase vómito" do pavor que me sobe garganta acima...
Essa dolorosa saudade vem do David.
É o próprio David.
É assim que o David existe e continuará a existir enquanto eu existir.
Está cá dentro.
Quem olhar para mim, bem de perto, bem dentro e lá no fundo dos meus olhos, pode vê-lo.


Não um adeus distante
Ou um adeus de quem não torna cá,
Nem espera tornar.
Um adeus de até já,
Como a alguém que se espera a cada instante.

Álvaro Feijó

06 setembro 2008

Silêncios pesados...



Não posso falar, não posso parar, não posso deixar de fingir, não posso continuar a deixar que certas palavras me magoem, não posso continuar...
Sei que sorrio; mas é só o gesto de...
Assim não dá!
Existo, sinto...
Sinto a inexistência de sentir, aqui ao lado.
É Setembro e vai passar.
Mas Outubro permanece.
Outubro vai continuar.
Outubro vai ficar.
A mão que me podia ajudar está fechada
Não se estende
Apesar de todas as outras que se abrem.
A que me podia ajudar
Foje a qualquer contacto.
Será sempre assim?
Assim, não.
Não tenho força para tanto.
Não dá.
Ainda agora estou a tentar regressar.
Valerá a pena?



Se conseguisse
chorar rios de infinita solidão

afastar daqui estranhos pensamentos

ser como os outros

ser como ninguém!


Pergunto-me o que irá

Acontecer a esta alma desfeita...

David Sobral (1996)

05 setembro 2008

Tenho saudades



Aqui estou, David.
Um pouco atormentada por não saber quem sou.
Mãe orfã? Não, porque tenho um filho.
Ou talvez sim. Porque cada filho é só aquele filho e são dois.
Mas mãe é uma só pessoa que se desdobra por cada filho.
E se uma parte se parte e fica apenas a metade?
Como se recolhe a parte que partiu e se guarda na caixinha, longe do olhar do outro filho?
Como é possível que a parte que ficou se reconstitua e pareça inteira?
É tão difícil este pôr e tirar as máscaras.
Não sei quem sou...
Fujo. Falo demasiado, sem pensar, para não chorar.
Ando atormentada.


Tenho razão de sentir saudade,
tenho razão de te acusar.
Houve um pacto implícito que rompeste
e sem te despedires foste embora.
Detonaste o pacto.
Detonaste a vida geral, a comum aquiescência
de viver e explorar os rumos de obscuridade
sem prazo sem consulta sem provocação
até o limite das folhas caídas na hora de cair.

Antecipaste a hora.
Teu ponteiro enlouqueceu,
enlouquecendo nossas horas.
Que poderias ter feito de mais grave
do que o ato sem continuação, o ato em si,
o ato que não ousamos nem sabemos ousar
porque depois dele não há nada?

Tenho razão para sentir saudade de ti,
de nossa convivência em falas camaradas,
simples apertar de mãos, nem isso, voz
modulando sílabas conhecidas e banais
que eram sempre certeza e segurança.


Sim, tenho saudades.
Sim, acuso-te porque fizeste
o não previsto nas leis da amizade e da natureza
nem nos deixaste sequer o direito de indagar
porque o fizeste, porque te foste.

Drummod de Andrade

03 setembro 2008

As flores continuam lá...



Toda a minha vida me parece ter-se reduzido a dois anos; o ano antes e o ano depois...mal definidas as fronteiras.
Do tempo anterior, não tenho memória. Surgem imagens que se sobrepoem; outras que se diluem em fumo... Não sei.
Bloqueei, não localizo os acontecimentos.
Tudo se resume a "o ano passado".
Quer tenha sido há um ano, dois ou três.
Revejo fotografias, documentos, ... mas não me revejo.
O meu "Sentimento de si" de que falava o António Damásio desfez-se?
Não procuro os meus pedacinhos, espalhados por aí.
Procuro os teus.

Do tempo futuro, não pretendo nada; não projecto, não antecipo.
Espero.
Corro entre margens que me sustentam.
Serei um rio.
Que, tarde ou cedo, vai dar ao mar.
E tu, David, aguardas-me, sempre, na foz.
A cada instante, na maré baixa ou na maré cheia... Não importa.
As águas misturam-se.
Se não é o mar a avolumar-se, rio acima; será o rio a procurá-lo mais abaixo.



Que nenhuma estrela queime o teu perfil
Que nenhum deus se lembre do teu nome

Que nem o vento passe onde tu passas.


Para ti criarei um dia puro

Livre como o vento e repetido

Como o florir das ondas ordenadas.


Sophia Mello Breyner Andresen

01 setembro 2008

Tisteza, não!





Esta vontade de fugir e ser empurrada por um vento forte regressa.
Regressa sempre, à mesma hora, quando o crepúsculo se instala, lá fora e cá dentro.
Como se corresse a cortina e dissesse “Agora, não! Já representei o meu papel. Está na hora de me retirar para o camarim e tirar a maquilhagem. Deixem estes músculos da face descansar.”
Então, encosto-me ao muro. Olho em direcção ao monte onde rodam as eólicas (sempre aqueles moinhos à espera de D. Quixote).
Tu olhas-me de lá e eu tento imaginar-te, naquele fim de tarde de Outubro de sol.
Mas não vejo; não vejo nada.
É sempre a mesma imagem, a que revejo … o teu andar lento à roda da piscina, a fazeres-me a vontade para que apanhasses um pouco de ar.
O teu andar lento, cansado, desligado já de qualquer razão para o fazeres.
Descubro esse abandono no olhar ausente, embora não triste.
Mas cansado, muito cansado, a pedir repouso.
É sempre isso que procuro – cansaço, desapego ou tristeza?
Mas não, acho que não é tristeza que vejo!
Não suportaria a tua tristeza (consciente).

Vem lágrima companheira.
Preciso de chorar,
Preciso de recuar no tempo, rever os nossos passos doridos, as nossas conversas a dois, a esperança ainda prometida de Setembro mas desfeita em mil cacos, em Outubro.

Apesar da tristeza e do medo … entre nós, não havia silêncios pesados.
Agora são o meu camarim, para onde me retiro, quando o dia chega ao fim..



Interlúdio

As palavras estão muito ditas
e o mundo muito pensado.
Fico ao teu lado.

Não me digas que há futuro
nem passado.
Deixa o presente — claro muro
sem coisas escritas.

Deixa o presente. Não fales,
Não me expliques o presente,
pois é tudo demasiado.

Em águas de eternamente,
o cometa dos meus males
afunda, desarvorado.

Fico ao teu lado.

Cecília Meireles