28 agosto 2008

Por isso, este (des)Norte.


Moledo.jpg

Atravessei o Verão de olhos fechados.
Nem praia, nem mar, nem jardim me fizeram abri-los para o azul imenso ou para o verde do Minho.
Estão no mesmo lugar, bem os vejo; não os sinto.



Barcelona.jpg


Permaneci, de certa forma, ausente e distante, junto de um outro mar manso, debaixo de um outro céu, sufocante; onde nos sentíamos devorados pelas saudades de tudo isto que, agora, tenho.
Afinal, significa tão pouco, sem ti, meu rapazinho.
De que servem a encosta verde e as casas brancas onde o sol reflecte, quando se põe?
Que dizem as gaivotas quando voam, baixinho, sobre a areia, quando o céu se tinge de amarelo?
Era disto que tínhamos saudades…
Agora que o tempo falou mais alto, a verdade revelou-se, crua e certeira...
Afinal, era e é do reflexo da luz do monte e do azul do mar, nos teus olhos, que tenho saudades.
Saudades de ti e dos teus olhos e do que via, através deles também.
Sem eles sinto-me perdida, sem idade, sem certezas que me sirvam de âncora e me fazem falta.
Tenho saudades da certeza do teu carinho incondicional por mim.
Por isso, me dizias "Teria pena de morrer, mas só por ti, mamã! Porque não o mereces!"
Por isso, este (des)Norte.
Sinto-me exposta, frágil...com a idade indefinida do tempo que tudo arrasta e me arrastou.
E, no entanto, estou aqui, não estando por inteiro.
Até quando suportarei estas saudades imensas?
Sem fim…

26 agosto 2008



À delicada Filomena, queria dizer que, pelo menos até agora, publiquei todos os comentários que aqui são feitos.
Todos trazem a boa vontade de todos os que escrevem.
Todos trazem uma dose grande de solidariedade.
Respeito todos os que me escrevem, no blog ou directamente.

Se todos vemos tudo da mesma maneira? Não, não vemos.
E ainda bem.
Já todos perceberam que não acredito em vida depois da morte, que não acredito em Deus.
Deus tirou-me um filho?
Não, não tirou.
Seria demasiada maldade...
É apenas a vida.Tantas vezes, madrasta.

Tal como o David, acredito nos homens, na bondade e naquilo que cada um pode dar de si aos outros.
Pode ser a Fé que têm.
Sempre a aceitámos, eu e ele.
Por isso, Filomena, por que razão não publicaria o seu comentário. É a sua parte de sofrimento pela minha dor.

Quanto a deixar o David partir… deixei…deixei, sem pedir mais um bocadinho.
Fingi serenidade, quando confirmaram que eu sairia, desta vez sozinha, daquele quarto de hospital. O David ficaria ... mas eu fingia.
Deixei, sem um queixume visível, que lhe tirassem o soro, quando me explicaram que isso só lhe causaria desconforto.
Ouvi, sem um lamento visível, dizerem-me que o David iria entrar em coma.
Acatei, sem uma lágrima visível, quando me disseram, pela manhã do dia 18 de Outubro, que o David iria morrer naquele dia; que não faltava muito.
Continuei (tentei) a fazer o que sempre fizera, sem ansiedade visível - falar-lhe de música, de projectos, do regresso a casa; acariciar-lhe a mão; dar um beijo na testa.
Mesmo quando já estava em coma.

Todos (muito poucos) os que entraram naquele quarto de hospital, antes do David morrer e mesmo já em coma, foram proibidos de deitar uma lágrima, de pronunciar uma palavra menos alegre, de usar um tom de voz menos confiante.
Foi isso que impus aos outros e me impus, a mim própria.

Se custou?
Ainda, agora, não sei como fui capaz...
Mas um filho leva-nos ao limite das forças.
Queria deixá-lo ir, sereno, livre de continuar a sonhar com palcos e luzes e risos e música…com a mãe, sempre, a apoiá-lo.

Nunca, em dezoito meses de doença, o meu filho viu uma lágrima minha ou um ar desesperado.
Ele sabia o quanto eu sofreria.
Mas nunca desistimos e acreditávamos que tudo iria melhorar.
Dizia que eu era a mãe coragem, a rocha firme ao lado dele.
(Ele é que era a rocha, a coragem!)
Foi assim, até eu poder chorar.
Mas só depois de ele ter partido.
Acredite, Filomena, que o libertei.
E ele sabia que seria, assim, se tivesse que ser...
Tivemos conversas estranhas, penosas para mim. Em que só eu ouvia.

Às vezes, penso que se, por um misterioso acaso, ele andasse por aí, empoleirado numa nuvem e me visse, me sorriria, certamente.
Sei que teria orgulho em mim… porque saberia que eu estou a fazer o melhor que posso e sei.
Ainda me revejo, em tudo o que faço, nos olhos do meu filho, no seu ar de crítica ou de elogio.
E sinto que não o estou a defraudar.
Vou devagarinho.

Acredite, Filomena!
E obrigada.

Um abraço
Isabel

Uma mão aberta, outra fechada



Convencemo-nos de que a vida será melhor depois...

...depois de acabarmos os estudos, depois de arranjarmos trabalho, depois de casarmos, depois de termos um filho, depois de termos outro filho.
Então, sentimo-nos frustrados porque os nossos filhos ainda não são suficientemente crescidos e julgamos que seremos mais felizes quando crescerem e deixarem de ser crianças. Desesperamos, então, porque são adolescentes, instáveis, agressivos, tristes e fugidios.
Pensamos: «Seremos mais felizes quando esta fase acabar!»
E não desistimos de achar que tudo é imperfeito e decidimos que a nossa vida será, realmente, perfeita, quando estivermos profissionalmente estabilizados, quando tivermos um carro melhor, quando pudermos ir de férias sossegados, quando tivermos uma casinha no monte, quando nos reformarmos e pudermos passear, com os netos pela mão.
Mas a vida está cheia de reptos imprevistos, de rasteiras inesperadas.
Foge do nosso controlo, sempre.
Não há um “ser feliz depois”, nem uma via-verde para ...
A felicidade paga portagens: uma encosta que se sobe, a colina que se desce! E outra e mais outra...
Um dia, inesperadamente e por razões nunca imaginadas, descobrimos que mesmo as encostas mais íngremes, as que deixam os pés em sangue, nos podem trazer pedacinhos de felicidade.
E eu, lentamente, entre lágrimas que não se esgotam, sou forçada a procurar, entre os destroços da vida, os momentos bons que tive. E, apesar de tudo, aproveitei; já que os recordo com doçura e tão nitidamente!
Vou juntando esses pedacinhos ... mesmo os que tinha amarrotado, com raiva, e molhado, com outras lágrimas, e que, agora, aliso - para ver em que parte da minha existência encaixam.
Tudo aponta para que, no fim, o puzzle reconstituído me diga – “fui feliz”.
Exististe de forma tão intensa, para mim!
Como poderia eu não ter sido feliz?

Do nosso trajecto guardei tudo o que pude e mantenho, numa mão fechada.
Revivo os nossos dias, dia a dia, a cada dia que passa; como se percorresse o mesmo trajecto, agora, em sentido inverso. Procuro outros sinais perdidos no caminho: um olhar aqui, um sorriso ou um gesto meigo ali,...
E reconstruo a felicidade possível.

A outra mão continua aberta; vou guardar o que puder e conseguir.
A felicidade é um trajecto, nunca será um destino.

24 agosto 2008

Os segredos da saudade


A saudade reveste-se de segredos.
Esta saudade é a única de que se pode dizer que é permanentemente para sempre. Por isso, destroça e vai doendo de forma indefinível.
Dói e destroça, cá dentro, de forma invisível e calada, porque, assim, me impus.
É coisa minha.
Mas sinto-me perdida, quando páro para pensar.
Não sou aquilo para que vivi e tudo me parece estranho.
Esta que assim se vê, quem é?
Ela? Eu? Uma terceira pessoa que ainda não tem sentimento de si?

Procuro a exaustão possível - a que me adormeça, sem dor ou saudade, quando os movimentos se calam e as penumbras se instalam nos corredores da casa.

Colado a mim, transporto um medo sonâmbulo do futuro, braço longo de saudades que se estendem dum passado tristemente nítido, que se embebe no presente.
Movo-me nesta teia estranha e ameaçadora, misto de sinais, de sorrisos, de coragem quase exangue, de rostos e suores e, mesmo, de árvores tranquilas do jardim e parque de crisnças que avistávamos duma varanda catalã.
Estou lá, estando, aqui, tão longe - desdobrada.
Espero pela noite mais profunda.
E, só então, páro para pensar porque o tempo, à espreita, se impõe inadvertidamente – finalmente.
Entre a noite e o dia que amanhece, ninguém passa.
Além de nós.

22 agosto 2008

Duas casas


Renato Roque

Se a casa de férias está cheia (quase!)...
Se, finalmente, uma parte dos sonhos que se sonham para a vida se realiza, com a presença de uns olhinhos escuros...
Há uma outra parte, definitivamente, irrealizável...
Por isso, construí esta Casa para ti, onde venho, mesmo não vindo ...
Porque ela sou eu...
Porque a trago comigo, sem que a vejam...
Porque o peso das lágrimas, que não deito, se acumula... se não venho
E porque há, sempre, uma hora do dia em que as outras portas se fecham e estas se abrem para que, por elas, entre o pôr-do-sol ou a chuva ou o cheiro das algas ou o apito do comboio que passa, lá longe, ou um dos teus sons... ou o silêncio, apenas.

É para ti e para mim que falo - a vida, lá fora, tem de continuar.
Mas há outros - poetas - que nos ouvem sussurrar e nos dizem coisas bonitas.
Hoje, partilho-as.


"A cada dia que vivo, mais me convenço de que o desperdício da vida está no amor que não damos, nas forças que não usamos, na prudência egoísta que nada arrisca e que, esquivando-nos do sofrimento, perdemos também a felicidade."

in comentário de Sua irmã, de Carlos Drummond de Andrade


Querida Amiga,

Como Lhe escreveu minha mulher, a Isabel tem mais força do que nós todos juntos!

Como cita de Drummond de Andrade Sua irmã, nada arriscando e esquivando-nos ao amor e ao sofrimento, perdemos também a felicidade.

A felicidade, aliás, se é um estado de pureza virginal e imaculada, uma pulsão (!), não o é por ser alheada do risco e do sofrimento, da capacidade de amar ou de exposição, do testemunho das nossas próprias fragilidades ...

Será antes o que de puro, virginal e imaculado somos capazes de conservar e logo porque se ama e pesem embora ou por maioria de razão o risco e o sofrimento a que nos expomos!

Diz-se da prostituta que pesem embora todas as devassas a que é exposta e sujeita, conserva sempre em si um lugar intocável que não há humilhação capaz de lhe chegar ...

Quando Lhe enviei o último dos textos da trilogia, o Silêncio, pensei que com ele me iria progressivamente retirar da Sua dor que tanto tenho acompanhado, até por perceber no que já disse e escreveu, que tem a Sua dor, ela é Sua e tem, seguramente, o seu próprio processo de remissão, o seu tempo e o seu espaço também, que apenas a minha Amiga saberá como sarar, ou como com ela e para sempre, conviver!

Mas achei e pese embora me ir, progressivamente, silenciando, não que da Sua dor me afaste mas que me vá silenciando,é lá possível afastar-me de todo este Seu processo com o qual, convivendo, também aprendi Consigo (!), mas silenciando sim.

É que o silencio, se toda a musicalidade e a poética contém, simultaneamente dá espaço a elas e deixa, com outra oxigenação, respirar!

A minha Amiga sabe que nos tem por aqui, a minha mulher e a mim próprio e sempre disponíveis e mesmo se pelo silêncio Lhe responder, já que ele ... está cheio de tudo.

Um beijinho, Seu

Jaime Latino Ferreira

21 agosto 2008



Moledo, Mar,...o David à espreita.
É tudo o mesmo caminho; feito de pedras, de areia branca e de verdura do Minho.
Não há um intervalos de tempo entre tudo (que és tu) e eu, nestes dias estranhamente agitados. Transporto-te (invisível e silencioso) em todos os passos, todos os gestos, todo o sentir.
Não disfarço; é mesmo assim que existo - uma parte de mim segue o teu caminho, em paralelo.
Não se regressa.
Não finjo.
Estou bem, embora não esteja.
Não quero que seja de outro modo.
Se acaso, me desvio ou me esqueço de fechar esse recanto onde existimos, ao acordar, uma lágrima logo vem, de mansinho, embaciar-me o olhar.
Recolho-a e guardo-a porque te pertence, invisível e silencioso, numa presença constante.
E, a cada dia, reinvento passos e caminhos, palavras feitas de vento norte, de rochas escuras e de areia branca molhada por ondas salgadas, onde te derramas.
É por aí que andas.
Moledo, Mar, David.
Mãe.

18 agosto 2008

10 meses



Travei muitas batalhas.
Mas a maior e mais determinada, contra tudo e contra todos e desde o início, foi que o meu filho acreditasse sempre que haveria um dia seguinte e mais outro e mais outro.
Um rapazinho no início da vida, cheio de projectos e vitalidade tem direito a ter um dia seguinte.
Mesmo sabendo-se que, talvez, não tivesse ...
E essa incerteza me queimasse as entranhas.
Ganhei (acho...) essa batalha, porque só ele contava.
Mas foi uma vitória amarga, é a minha derrota.
Faz, hoje, 10 meses que o David acordou para o dia seguinte, mas num lugar longínquo.
Estendo a mão em busca da mão dele, mas só recebo o aperto do vazio frio que ficou.
E me acorda dum sono não dormido.

17 agosto 2008

Aprende-se com o tempo


Estúdio de Ópera.jpg (Luz-David Sobral)


Sei que não devia ser assim, mas é.
Gostaria de viver naturalmente, como as minhas gatas Valquíria e Jenufa, que deambulam pela casa, adormecem nos sofás, pulam para o meu colo mal me vêem disponível e vivem sem pensar que é necessário viver.
Ou morrer, como a minha gata persa,Tosca, que morreu de velhice, este mês, em Moledo.
Era a gata protegida do David por ser velhota, por sofrer do coração e não dever ser incomodada...
Morreu simplesmente.
Ter-se-ão apercebido das alterações de humor, do silêncio que se foi instalando, aqui em casa?
Dos espaços vazios que sobram?
No ano passado, em Barcelona, sentimos a falta delas; sobretudo o David que gostava de as ter à volta.
Chegámos a pensar que devíamos ter levado uma delas para lá.
Chegámos a pensar tanta coisa!
Chegámos a pensar que arranjaríamos nova gata, também com nome de ópera, para a casa que o David compraria, aqui ao lado.
Tínhamos que fazer projectos, ou afundar-nos-íamos.
Projectos, sempre, até ao último dia.
Muitas vezes, era eu quem começava "Como pensas dar início à venda de espectáculos da tua empresa? Quando começas o desenho de luz?"
Como se tudo estivesse em aberto...
Como se finge bem perante um filho, sem que se faça qualquer esforço. Porque tudo se diz e surge, naturalmente.
(E quando descobrimos que nunca nada está em aberto ou, então, está tudo mas é como se nada estivesse?)
Como não vivo, então, naturalmente?
Vivo ... mas chego, à noite, cansada.
Sorrio, mas sou também lágrimas escondidas, durante o dia.
A isto, chamo o meu viver naturalmente.
Aprende-se com o tempo.
Embora nunca se aprenda.
Naturalmente.

16 agosto 2008

El feo


sm2planets.jpg

Hoje, acordei a pensar que tinha que te ir acordar...
Acontece-me com frequência.
E lembrei-me.
Eu perguntava:
- Posso dar-te um abraço?
Tu respondias:
- Está bem, mas não abuses!

Ainda bem que te dei muitos abraços, beijos de "Bom-dia, David", "Até logo, David", "Olá, David", "Até amanhã, David".
Mais o abraço da noite, cada vez maior e mais longo, ao longo do tempo da tua doença.
Ultimamente, eras tu quem me dizia:
- Vá, vamos lá ao abraço da noite!
E fazias-me festas na cabeça...
E eu deixava-te, para adormeceres ao som das tuas músicas.

São as saudades e o "misterioso mundo das lágrimas".
Ou então é a canção "El feo" da Lila Downs...


Tarde


O que eu queria dizer-te nesta tarde
Nada tem de comum com as gaivotas.

Sophia de Mello Breyner Andresen

14 agosto 2008



Não consigo evitar estar mais alerta a tudo.
Hoje, no supermercado, enquanto arrumava as compras no saco, a menina (senhora) da caixa olhou para a medalha que trago ao pescoço e disse "Estou a olhar para a sua medalha, é tão bonita!"
A medalha que trago diz apenas que sou "mamã para sempre".
Sem pensar, disse-lhe "A medalha é bonita, é! A razão por que a trago é que não!"
Voltou a olhar para mim e disse "Eu também perdi um filho com 13 anos, há 3 anos! Percebi pela forma como o disse e pelos seus olhos."
Só acrescentei que o meu tinha 29 anos e tinha morrido há 9 meses.
E fiz-lhe uma festa na mão que ela retribuiu, enquanto os clientes seguintes, olhavam para nós, silenciosos. Tinham ouvido esta conversa rápida.
E afastei-me, mandando-lhe um beijo pelo ar.
Não nos conhecíamos, nem de passar por ali; não sei o nome dela... fixei-lhe os olhos.
..............................
Há um ano, em Barcelona, passámos (o David, eu e o Manel) toda esta noite de 14 para 15, na urgência do hospital Vall d'Hebron. Saímos de lá já com sol, com o David a cambalear de sono e cansaço mas aliviado das dores musculares que nos tinham levado lá.
Agora, que o tempo passou e tenho todo o tempo do mundo para pensar, duvido que fossem dores apenas musculares.
Ainda bem que, na altura, foi esse o diagnóstico... e que acreditámos...
Deu-nos tempo - o bem mais precioso!



Há muito tempo, no Tibete, uma mulher viu seu filho, ainda bebê, adoecer e morrer em seus braços, sem que ela pudesse fazer nada. Desesperada, saiu pelas ruas implorando que alguém a ajudasse a encontrar um remédio que pudesse curar a morte do filho. Como ninguém podia ajudá-la, a mulher procurou um mestre budista, colocou o corpo da criança a seus pés e falou sobre a profunda tristeza que a estava abatendo. O mestre, então, respondeu que havia, sim, uma solução para a sua dor. Ela deveria voltar à cidade e trazer para ele uma semente de mostarda nascida em uma casa onde nunca tivesse ocorrido uma perda. A mulher partiu, exultante, em busca da semente. Foi de casa em casa.
Sempre ouvindo as mesmas respostas - “Muita gente já morreu nesta casa”; “Desculpe, já houve morte em nossa família”; “Aqui nós já perdemos um bebê também.”
Depois de percorrer a cidade inteira sem conseguir a semente de mostarda pedida pelo mestre, a mulher compreendeu a lição.
Voltou a ele e disse: “O sofrimento me cegou a ponto de eu imaginar que era a única pessoa que sofria nas mãos da morte”.

Retirado da net, sem ter conseguido identificar o autor.

13 agosto 2008

Vários olhares



São dias intensos de esperança na vida e saudades da vida.
De ver abrir lentamente uns olhinhos negros que acordam; de recordar o fechar lento de uns olhos verdes que adormeceram.
São vidas que se enlaçam numa só corrente - o silêncio dos meus olhos.
Aí se vão fixar, em cada detalhe, o ontem, o hoje e o amanhã, porque aprendi que é preciso aproveitar cada instante do tempo que nos é concedido para amar.

Murmúrio (ao David)

Traze-me um pouco das sombras serenas
que as nuvens transportam por cima do dia!

Um pouco de sombra, apenas,

- vê que nem te peço alegria.


Traze-me um pouco da alvura dos luares

que a noite sustenta no teu coração!

A alvura, apenas, dos ares:

- vê que nem te peço ilusão.


Traze-me um pouco da tua lembrança,

aroma perdido, saudade da flor!

- Vê que nem te digo - esperança!

- Vê que nem sequer sonho - amor!


Cecília Meireles


Diante de uma criança (Miguel)

Como fazer feliz meu filho?

Não há receitas para tal.
Todo o saber, todo o meu brilho

de vaidoso intelectual

vacila ante a interrogação

gravada em mim

impressa no ar.


Bola, bombons, patinação

talvez bastem para encantar?


Imprevistas, fartas mesadas,
louvores, prémios, complacência
milhões de coisas desejadas,

concedidas sem reticências?


Liberdade alheia a limites,
perdão de erros, sem julgamento
e dizer-lhe que estamos quites,
conforme a lei do esquecimento!

Submeter-me à sua vontade
sem ponderar, sem discutir?
Dar-lhe tudo aquilo que há-de
entontecer um grão-vizir?


E se depois de tanto mimo
que o atraia, ele se sente
pobre, sem paz e sem arrimo,
alma vazia, amargamente?

Não é feliz. Mas que fazer
para consolo desta criança?
Como em seu íntimo acender
uma fagulha de confiança?

Eis que acode meu coração
e oferece, como uma flor,
a doçura desta lição:
dar a meu filho meu amor.


Pois o amor resgata a pobreza,

vence o tédio, ilumina o dia
e instaura em nossa natureza
a imperecível alegria.

Carlos Drummond de Andrade

Cruzo os braços




Vivo em mundos paralelos; acho que será sempre assim.

A claridade do dia obriga-me a viver de acordo com a vida. De acordo com a minha nova responsabilidade de me tornar uma boa avó e continuar a ser mãe.

O anoitecer e a madrugada trazem-me o David e destapam a saudade e as imagens que, ainda, não são alegres nem serenas.
Sinto-me perdida nos corredores da noite.
As imagens que se fixaram são, em tudo, ainda, o oposto do meu rapazinho que era alegre, dinâmico, meigo e inconformado.
Ainda o vejo, nitidamente, naquele quarto nº24, já frágil e desprotegido, completamente dependente de mim e dos cuidados das enfermeiras.
E com um sorriso ténue e sempre as mãos doces, prontas para uma carícia; talvez já não completamente consciente de que o era...
Estava na natureza dele, essa meiguice com a mãe, aprofundada por 18 meses de cumplicidade, luta e força de viver.
Ainda o vejo, nitidamente, em Barcelona.
Ao acordar, penso "Hoje, é dia...; no ano passado..."

A 13 de Agosto de 2007, em Barcelona...
Depois de imensos exames, quase diários desde que ali chegámos, primeiro tratamento, às 10:30.
Fomos os três. Íamos sempre os "três mosqueteiros", como o David gostava de nos designar.
Eu estive, quase sempre na sala onde o David esteve a fazer os "anti-corpos". O Manel, sempre cá fora, à espera. Discreto.
Entrava, de vez em quando, para ver se estávamos bem e saber se eu não quereria ir comer qualquer coisa ou se era preciso ir buscar algum sumo ou alguma "orchata" ao David.
As enfermeiras Sónia e Núria, muito simpáticas e delicadas com o David. Eram muito jovens; sobretudo a Núria que achava piada às piadas do David, que nunca perdeu o sentido de humor e brincava com tudo o que tinham que lhe fazer.
E eu sei o quanto lhe custava picarem-lhe a veia; ainda não colocara o novo cateter.
Ainda estava muito dorido da biópsia... E sem dormir, devido a dores musculares!
Mesmo, assim, brincava com as enfermeiras.
Eu fazia-lhes écharpes. As lãs e as agulhas sempre me acompanharam, desde o início da doença do David e a toda a gente oferecia cachecóis e écharpes.
As enfermeiras, tanto cá como lá, sempre foram excepcionalmente ternurentas com ele.
Era um rapaz bonito, de olhos verdes e com um humor cativante. Como poderiam não se "apaixonar" por ele?
Ainda, agora, quando o meu neto nasceu e o fui ver, aproveitei para fazer uma visita ao hospital de dia, onde fse azia a quimioterapia, e dar um abraço sincero às enfermeiras que tanto se dedicaram ao meu rapazinho.
Não o esqueceram... e eu não quero que o esqueçam.
Não vou deixar.

As coisas de que uma mãe se recorda, quando cruza os braços e o pensamento invade o dia.



MÃE

Generosidade é ser mãe
É ser o que está para vir
Como a minha Amiga tem
Todo o lugar para ouvir

Todo o lugar para cingir
O Mundo todo que vem
Pois se já sabe acudir
Tem todo o espaço refém

Sofrer é sempre ser mãe
É não saber por onde ir
É ter a coragem de quem

Mesmo ao vê-Lo partir

Mais sabe por ter alguém
Que por A querer sabe rir

Jaime Latino Ferreira

10 agosto 2008

E, no entanto,...


ODETE LOUREIRO

Percebo a duplicidade que existe em cada um.
E não é necessário fingir...
Basta recuar e avançar no tempo.

10.Agosto.07
Foi o início da queda, do desconforto da saudade, do não saber o que fazer, de correr sem pensar, de sentir ... sem tempo para refelectir.
Acordámos, em Barcelona, às cinco da manhã. Às 7h tínhamos que estar no Hospital Bellvitge, distante do centro. Foi preciso chamar um táxi para as 5h da manhã, na véspera, para termos a certeza de chegar a horas.
O PET, sabíamos que não era doloroso. Um relaxamento muscular e sensação de sono... Íamos descontraídos.
O que nos causava alguma ansiedade era a biópsia ao fígado, mais tarde, por volta das 13h, no hospital onde decorreriam os tratamentos e que já conhecíamos.
E foi assustador...traumatizante. Muito doloroso.
O David não estava, psicologicamente, preparado para aquelas dores!
E raramente se queixava! O meu rapazinho dizia sempre que estava bem.
Saiu do bloco triste, derrotado, de lágrimas nos olhos que imploravam ajuda, revoltado porque lhe tinham mentido; porque lhe tinham dito que não custava.
As dores nunca mais o abandonaram e a essas dores juntou-se o medo da nova biópsia que sabíamos que teria que fazer, passados 15 dias.
Que desespero! Que impotência a nossa, minha e do Manel, por nada podermos fazer.
Ainda, agora, neste momento, os sinto.
Que frágil somos perante as dores de um filho!
Ficam-nos marcadas na carne, na memória e nada apaga essas imagens de mãos vazias e agrilhoadas.
E ... não mais vontade de ver espectáculos.
E... não mais vontade de comprar guitarra.
E...não mais vontade de sair.
E...não mais vontade!
Apenas dormir, esquecer as dores, não pensar nas que, ainda, viriam.
Perderam-se no tempo, os gestos familiares
Ficaram como que adormecidos. Nada os recolhe. Nada os recupera.
.....................

Agora, há certos momentos nocturnos do dia, em que o meu falar está vazio de sentido, embora me ouçam e eu fale e me continuem a ouvir e eu responda…
Estamos todos juntos, próximos, frente a frente, e, no entanto incomunicáveis, como a imagem e o seu reflexo num espelho, onde a vida corre, mas a imagem reflectida se mantém fixa.
...........................

E, no entanto, tudo se concilia.
Porque há um choro de bebé que sossega no meu ombro, um olhar meigo e diferente duma jovem mãe e um pai/filho mais terno, tolerante e protector (também da sua mãe).
Confuso? Não.
Tudo bem nítido.
Nada apaga a dor nem a saudade do "menino da sua mãe".
Sei que sabia que o protegia. Sei que sabe que estou onde ele está e ele está onde estou, como uma segunda pele colada ao corpo (meu ou dele...não sei!).
E nada perturba o prazer de sentir um bebé que se entrega confiante e adormece.

...............................



E ao anoitecer

e ao anoitecer
adquires nome de ilha
ou de vulcão

deixas viver sobre a pele
uma criança de lume

e na fria lava da noite
ensinas ao corpo

a paciência o amor o abandono das palavras o silêncio
e a difícil arte
da melancolia


Al Berto

08 agosto 2008


David, filhote

Nasceu, hoje, um rapazinho. Chama-se Miguel.
É o meu neto, o teu tão desejado sobrinho.
Sei que serias o tio mais entusiasta e mais carinhoso do mundo.
Nem sempre os caminhos se bifurcam, ... E muito se perde, porque tu e ele jamais se juntarão.
Mas o teu caminho e o dele vão cruzar-se e entrecuzar-se dentro de mim, sempre.
O coração é uma casa espaçosa, imensa e onde nada se sobrepõe. Há espaços privados.
Tu tens, aqui, o teu lugar que é e será teu pela ordem natural das coisas do Amor duma Mãe dorida.
Tu me darás a serenidade necessária para olhar este novo rapazinho, porque sei que me olhas lá desse teu espaço etéreo, luminoso e musical e me sorris.
Tu me darás a força que eu sentia quando me apertavas a mão, como quem dizia "Mamã, vai correr tudo bem!"
Hoje, estou confusa.
Hoje, estou feliz.
Hoje, apertei o meu filho Sérgio, com força porque quero que tenha uma vida longa e seja um pai bom, tolerante e feliz.
Hoje, ofereci à Carla, uma medalhinha que diz "MAMA, forever!", igual à que trago ao pescoço.
Hoje, escrevo-te...porque o teu lugar continua. Aqui.
Dói? Claro que dói.
Dói muito esta lonjura que te afastou de mim.
Tal como sempre tive um sorriso de mãe para ti, o sorriso de avó já desabrocha e sorrirei ao Miguel, também, por ti.



Grande amor
Um dia vou gritar
Fazer-me ouvir

Para que todos me olhem

Com olhos de olhar

Vou dizer bem alto

O quanto te amo

E o quanto me encanto

De tanto te amar

E depois de gritar

Vou pular e saltar

Não mais calar

Sem nunca cessar

Este grande amor

Que eu te quero dar


David Sobral

05 agosto 2008




No fundo, tal como sempre disse, é, sobretudo para mim que escrevo e continuarei a escrever...porque há coisas que não dependem de respostas, embora as do Jaime me tenham sido sempre interessantes e me tivessem obrigado a pensar, às vezes, de outra forma.
Mas a saudade não tem data marcada, nem a dor se repete, já que, cada dia, outros pormenores me visitam e sinto as coisas de forma diferente.
Desisti dos cadernos onde escrevia há mais de dois anos. Corriam o risco de se perderem todas as recordações registadas...
Aqui! Permanecem.

Muito obrigada ao Jaime e Manuela.

Hoje, fui à praia.
Com os mesmos amigos, sempre e cada vez mais amigos, porque partilhamos as tristezas e alegrias com que nos vamos defrontando, ao longo dos anos.
As mesmas barracas em fila; as crianças diferentes (mas ainda assim as mesmas), a brincarem nas pocinhas de água; as algas a pintarem a areia de verde; a mesma Nortada (hoje ligeira)... a mesma rocha que viu os meus filhos brincar; a mesma rocha que acolheu o David como última morada...
Sinto-o mais aqui.
Ou me calo mais ou falo demasiado, até a boca me secar...
Tenho tantos e tão bons amigos! Ouvem-me, sem desviarem a conversa, na tentativa de me distraírem.
Sabem que preciso de abrir a caixinha de recordações e relatar este ou aquele episódio, triste ou menos triste, como se de um álbum fotográfico se tratasse.
É só disso que preciso; que os meus bons amigos que adoravam o David me deixem falar.
Nem que não ouçam!

Há um ano, Moledo ficaria para trás, estávamos a aterrar em Barcelona.
Levávamos malas e mais malas, música, livros, portáteis e fúria de viver e desespero escondido indizível. Amordaçado, porque o desespero por um filho doente não pode andar à solta.
À saída do aeroporto, tínhamos à nossa espera uma amiga do David, cantora lírica - Maria Hinojosa. Até ali tinha amigos, prontos a ajudar.
Tinham insistido em nos levar aos apartamentos que alugáramos na Calle Valencia.
Nada os demovera e lá estavam, Maria e o pai, dois catalães simpáticos e afáveis.
O David deixara para trás as relações conturbadas com o pai e prima. Já não pensava nisso. Decidira só pensar na cura prometida pela nova droga.
A conversa com a Maria andava à volta dos espectáculos que iriam ver em Barcelona, da praia que iriam fazer, das casas de tapas mais famosas, das visitas por lojas de guitarras, dos contactos para a nova empresa do David.
Tudo era entusiasmo e força de viver.
Eu e o Manel seguíamos atrás, com as inúmeras malas. A leveza do David tornava-nos as malas leves.
Ninguém diria, ao ver-nos, que aquele rapazinho alegre e descontraído se preparava para enfrentar mais uma luta desigual.
Apesar do "bom ar", ia frágil, ia cansado de longos combates.
Não imaginávamos o inferno que nos esperava, apesar das boas expectativas ...
E, agora, aqui, sinto que continuo também lá.
Não o posso evitar.
Este é o regresso a Moledo sem o David, sem as guitarras, sem a música que sempre havia, sem as sandes minimalistas que ele fazia ao almoço, sem a bicicleta encostada ao muro.
A sombra onde estacionava o carro está vazia, a bicicleta está guardada.
Eu estou aqui e estou lá.
Dispersa por aí.


Querida família,

No me lo puedo creer, estoy muy emocionada, mucho, no puedo creerlo, jamás vi tan seguro a nadie de si mismo, confié en él tanto como él lo hacía en sí mismo, estoy muy conmocionada.
No sabía nada.

Te agradezco infinitamente que me lo hayas comunicado y en un mail tan hermoso. Quiero mucho a tu hijo David, mucho, y me siento muy triste.
Espero que hayá donde esté siga haciéndonos tan felices como lo hizo aquí. Espero que él también lo será.
Isabel, quiero deciros a ti y a tu família que si necesitais cualquier cosa me teneis aquí a mi y a mi família. Siempre que lo necesiteis.
Quería felicitaros por vuestro tesón y compañía hasta el final. Por no dejar de ser vosotros y acompañar a David en todo lo que él necesitaba.
Sois una gran família.
No tengo palabras para expresar lo que siento.
Gracias por todo David, gracias Isabel y gracias a tu marido.
Le dije a tu hijo en un mail que el 1, 2 y 3 de febrero voy a cantar a Lisboa, si estuvierais cerca me gustaría invitaros, así podemos estar un rato juntos, aunque ahora sé que es muy temprano y no es momento quizá solo quería que lo supierais. Un abrazo infinito, como todos

María Hinojosa Montenegro

04 agosto 2008

Estou menos...

Esta casa nunca tem a porta cerrada e as janelas estão abertas para o sol, que a inunda de luz, e para os verdes do monte.
Esta casa não está fechada; mesmo não estando eu à porta, há sempre uma fresta entreaberta que aguarda, diariamente, o momento em que vens.
Aguardo, pacientemente, o momento de me despojar de "máscaras" e encostar os ombros à secretária e olhar para dentro de mim.
E vou vendo, como se de fora estivesse e me olhasse e a tudo o que me cerca.
As coisas, os espaços, as casas, o céu, o monte ou o mar continuam por aqui. Mas tudo é sempre, só e apenas, o que pensamos e sentimos que é.
O meu jardim ... olho-o daqui, mas não é o meu antigo jardim, embora seja o mesmo...
Nem as paredes completamente brancas da casa têm a mesma brancura repousante, de antes.
Tudo perdeu um pouco o significado que tinha. Apenas porque eu lho atribuía.
As minhas árvores são as mesmas árvores; mas não são as minhas árvores.
Sentia-as, confiando que as minhas árvores dariam fruto para além de mim; certa de que eu permaneceria também em ti.
E é talvez certo que, ainda assim, vou permanecer...
Mas já não da mesma forma.
Eu sou apenas aquilo que os outros pensam que sou e o que vêem em mim.
E cada um vê apenas o que vê e eu revejo-me no que cada um vê em mim.
Somos feitos de pequenas parcelas de representação de nós próprios nos outros.
Foi-me amputada a parte de mim que vias em mim.
Por isso, também Moledo e a brancura das minhas paredes perderam uma parte do seu fulgor.
Porque já não existe a parte de mim que tudo sentia dessa forma tão completamente fulgurante.
A parte de mim que tu vias em mim não regressa, levaste-a contigo.
Juntamente com a luminosidade de Moledo que aprendi a ver contigo.
Não estou melhor nem pior...estou menos...

Amanhã, tu, eu e o Manel partíamos para Barcelona. Com esperança redobrada...