22 julho 2008

A peça não encaixa.



Acabaram as aulas.
Tal como no ano passado, tudo se me apresentou um pouco distante, como se as vozes viessem de longe e apenas distinguisse tons e nunca as palavras.
Percebe-se que se é dispensável.
Ou sonhei nesse longo sono em que me fechei?

As aulas acabaram.
Fiz um enorme esforço para levar tudo, até ao fim.
Houve sempre quem me obrigasse a ir...
E também por respeito para com os alunos que trabalham, durante todo o dia e, à noite, gastam as últimas energias para frequentar a escola, em busca de melhorias ...
Depois de lá estar, as aulas correram bem. Eles gostaram de mim e eu...gostei deles.
Na verdade, estou-lhes, extremamente grata. Foram eles que me ajudaram a não pensar, constantemente, no David (embora eu sinta a contínua ausência dele, cá dentro).
E no último dia (noite) de aulas, ofereceram-me flores para que as colocasse, no cantinho que lhe destino em Moledo.
E despediram-se de mim, com grandes abraços enquanto me diziam "Para o ano, querêmo-la cá, logo em Setembro!"
É a forma de me dizerem que tenho que me manter à tona.

As aulas acabaram e não tenho planos.
A vertigem em que vivíamos em Julho passado regressa e instala-se.
Um avião que passa...
Um copo com "hielo"
O Dr. House que dedilha a guitarra...
Mais uma eólica, no monte...
Umas calças na feira de Cerveira...
Um mal-entendido ou puro egoísmo?
Horas e horas passadas em frente ao computador, à procura de um apartamento em Barcelona.
É assim que vivo...por instantâneas associações de ideias.

E sinto-me peça de um puzzle em que não encaixo. As outras peças sentem que há ali um espaço vazio e começam a criar brechas.
Mas eu tardo em chegar. Não tenho força nem sei se vale a pena.
Afinal...
Escondo-me em sítios onde não reparem em mim ou nos olhos inchados.
O puzzle que vejo contorcer-se para me dar espaço, não tem sentido para mim.
Como poderia ter sentido?

As aulas acabaram...
Só isso.
Viver cansa tanto!



Viver sempre também cansa.


O sol é sempre o mesmo
e o céu azul
ora é azul,
nitidamente azul
ora é cinzento,
negro, quase verde...


Mas nunca tem a cor inesperada

O Mundo não se modifica.
As árvores dão flores, folhas,
frutos e pássaros
como máquinas verdes.

As paisagens também não se transformam.
Não cai neve, não há flores que voem,
a lua não tem olhos
e ninguém vai pintar olhos à lua.

Tudo é igual, mecânico e exacto
Ainda por cima os homens são os homens.
Soluçam, bebem riem
e digerem sem imaginação.


E há bairros miseráveis
sempre os mesmos
discursos de Mussolini,
guerras, orgulhos em transe,
automóveis de corrida...

E obrigam-me a viver até à morte!
Pois não era mais humano
morrer por um bocadinho, de vez em quando
e recomeçar depois achando tudo mais novo?

Ah! Se eu pudesse suicidar-me por seis meses
morrer em cima dum divã
com a cabeça sobre uma almofada
confiante e sereno por saber que tu velavas,
meu amor do norte.


Quando viessem perguntar por mim
havias de dizer com teu sorriso
onde arde um coração em melodia:
«Matou-se esta manhã.
Agora não o vou ressuscitar por uma bagatela.»

E virias depois, suavemente,
velar por mim, subtil e cuidadosa,
pé ante pé, não fosses acordar a morte
ainda menina no meu colo...


José Gomes Ferreira

6 comentários:

Anónimo disse...

AULA MAGISTRAL

Ninguém é dispensável ...

Sou professor como a Minha Amiga e tenho para mim que a mais nobre das missões do professor, consiste em perante o mais negro dos cenários, bem sei que no Seu caso não se trata de um cenário mas da mais crua das realidades (!), consiste em, mesmo nessa circunstância, continuar a instilar esperança aos alunos.

Se o professor não se conseguir revirar do avesso e infundir a esperança, pouco mais pode ele ensinar a quem quer que seja.

Nem às dúvidas que o David estampa no seu poema!

Mas as aulas correram bem e eles gostaram de Si como a Minha Amiga deles, dos Seus alunos!!

Com eles, a Minha Amiga também aprendeu, que remédio (!), a não pensar sempre no Seu filho!!!

Até flores Lhe ofereceram, pois então, Minha Amiga ...

Flores e abraços, afecto e o desejo que volte para o ano!

Que mais quer?

Ter planos para as férias!?

Férias é não os ter, já bem basta o ano inteiro!

Ainda bem que a Minha Amiga é peça de puzzle difícil de encaixar:

É sinal de que não é dispensável porque a realidade não é assim um puzzle simples ou engrenagem onde como peça chapliniana se podesse encaixar ou encravar a máquina!

É muito mais, Minha Querida e aceite então essa lição que os Seus alunos Lhe deram no último dia de aulas, querendo-A lá para o ano!

Não os desiluda, está bem!?

P.S.

Oiça, já agora, a ária que minha mulher Lhe sugeriu, Erbarme Dich, mein Gott, e olhe para aqueles magníficos vitrais com coragem!

Jaime Latino Ferreira
Estoril, 22 de Julho de 2008

CA disse...

Olá Isabel.
Passo, silenciosamente, para lhe deixar um beijo inundado de carinho.
CrisArriaga

Anónimo disse...

Isabel,

Isto de se escrever em cima da hora e com o tempo condicionado, já que hoje de manhã tive aulas para dar, levou-me a confundir o poema de José Gomes Ferreira pensando tratar-se de um de seu filho.

Mais magistral ainda, será (!?), terá de ser a aula ...!

Como Lhe dizer então que se viver sempre poderá cansar, enquanto se vive, porém, nunca mais cansa!?

Que a cor inesperada existe, que nada é sempre igual ou que tudo se está sempre a modificar, tudo, o Mundo, tudo e tudo ...!?

Que há flores que voam, as borboletas por exemplo e que já podemos pintar olhos na Lua!

Que nada é mecânico e exacto e que uma das razões porque assim é, é porque os homens bebem, riem e soluçam, sorvem imaginação!

Que mesmo nos bairros miseráveis ou para lá dos discursos fascizantes ou das guerras, os homens persistem em sobreviver e uma das razões porque persistem é porque não abdicam de sonhar!

E que, exactamente, porque de quando em vez morremos um bocadinho, caímos e levantamo-nos de novo, rejuvenescido fica o nosso olhar e tudo em que ele toca!

E que os grandes sofrimentos se nos impedem de morrer e ressuscitar a prazo tão curto, são capazes de nos transfigurar e ter da ressurreição já o sabor, como menina de colo!

À Minha Querida Amiga, é possível ir mais longe e estar sempre a reacordar ...

E que beleza sem par a da manhã, de todas as manhãs sem terem igual!

Jaime Latino Ferreira
Estoril, 22 de Julho de 2008

Olga Almeida disse...

Eu diria que o problema não é a peça não encaixar, mas sim a falta dela. Será uma caminho difícil até se aprender a viver sem ela. Mas, acho que todos juntos conseguimos.
Beijinho Grande
Olga

Anónimo disse...

“ Acredito em valores transcendentais,acredito que a vida é só uma passagem para um Além que há-de continuar.Sou,pois,nesse sentido,um místico.Acredito na reincarnação,e trata-se de coisas muito íntimas,que a alma é imortal.Veja:vamos envelhecendo,parecemos cada vez mais sensatos,cada vez mais sábios,mas acho que,no fim de contas,somos uns eternos adolescentes.O corpo vai entrando em decadência mas a nossa mente mantém-se jovem,Isso,para mim,é uma prova da imortalidade do espírito da alma.E eu tive,como sabe,uma formação científica,inclusive aprofundada,porque sou médico,tirei duas especialidades,sou cirurgião-geral,sou urologista.Pelo que fui e sou um científico,pesquisei muita coisa.Mas nunca encontrei nem na neurologia,nem na neuro-anatonomia,nem na neuroquímica algo que me explicasse um sorriso ou um brilho no olhar.E isso é algo que vem de outro lado,nos transcende” ( Fernando Nobre,Presidente da Assistência Médica Internacional,”Grande Entrevista” a António Tavares-Teles,”O Jogo”,Suplemento, 12/4/2008 )António

Anónimo disse...

Isabel
Permita-me que lhe sugira que acabe com o termo "fim" e correlativos.
As aulas não acabaram. Existem as férias. E é nelas que se encontra.
O seu pensamento não se desvia, nem por um segundo, do seu David. É natural. Esse amor, essa dor, esse desgosto que não se desvanece, torturam-na. Permanentemente.
Quem sou eu para lhe dar conselhos?
Passo por aqui e sei o que venho encontrar.
Gostava de ter poder para lhe retirar essa dor que não é estranha mas que se entranha. Entranhou e não sai. Não quer saír.

Deixo-lhe o meu respeito e, apesar de tudo, da causa, a minha admiração.

Não se esqueça de tentar sorrir.