22 julho 2008

Os Davides


Fotografia de Carlos Lemos - Olhares

É frequente, no regresso de Moledo, eu e o Manel conversarmos sobre o David. Melhor dizendo, os Davides...
• O do karaté que cortou o cinto com uma tesoura porque era comprido demais
• O do, ainda, Karaté, quando, perante centenas de pessoas que assistiam a demonstrações num encontro de dezenas de escolas e, quando todos tiveram que fazer “uma saudação” com um enorme “berro”, ele, pura e simplesmente, tapou os ouvidos
• O dos legos que arrancou à dentada, acabado de ser operado a um quisto dentário
• O da mistura de histórias que contava, quando era pequenino; em que o Capuchinho Vermelho se juntava aos Três Porquinhos que, por sua vez, trincavam uma maçã envenenada pelo Gato das Botas Altas que era casado com a Bela Adormecida e tiveram uma filha a quem chamaram Gata Borralheira...
• O da ida a Nova Iorque, sozinho e determinado, a aprender mais sobre iluminação cénica
• O da banda de música que, sob a sua severa direcção, tocava no sótão, isolado acusticamente, todos os Sábados, à tarde.
• O da “brucelidade” que se referia à velocidade com que ele queria que o Manel o segurasse pela mão e corresse pela praia de Moledo
• O da Rampa Mágica que ele dizia que estendia para atravessar ruas (um perigo!), sem precisar de olhar para os lados
• O do Super-Homem na praia, sempre com a toalha atada ao pescoço e que não podia tirar para não perder os poderes que tinha
• O David do “dom da língua”, porque tinha sempre boas notas a línguas estrangeiras, sem estudar quase nada e porque era simpatiquíssimo para as professoras...
• O de "O Bom" ou "O Grande",... com que assinava
• O do teórico sobre educação de crianças porque achava que uns parentes próximos mimavam demasiado o filho e lhe davam tudo
• O do pesquisador incansável de música, que escrevia à D. Rosa do Blitz e repunha a verdade sobre músicos e novos CDs e que se correspondia com jovens de todo o pais que lhe pediam opinião sobre bandas
• O David Gourmet porque, a certa altura, passou a ter opiniões muito assertivas sobre comida e muita curiosidade por novos sabores
• O contestatário ao Rui Rio e das cartas que lhe escrevia a pedir que não fechasse teatros e apoiasse a cultura
• O defensor do Carrilho, que ele considerava ter sido o único Ministro “decente” da cultura porque equipou o país com novos cine-teatros, auditórios e criou uma rede de equipamentos partilhados por várias salas de espectáculos.
• O Amigo dos amigos
• O das gargalhadas sonoras, quando via talk shows
• O dos berros quando o FCP marcava golo e se ouviam em toda a casa e na rua
• O que estreou a Casa da Música e da ansiedade por que passou para que tudo ficasse com o mínimo de qualidade que, sempre, exigia
• O dos queijinhos de cabra e outras prendas gastronómicas que trazia das viagens
• O do Lamecus – Rosé de Lamego
• O da verdadeira UTOPIA que fazia parte dele
• O do mar azul de Creta, onde sempre disse que voltaria
• O das receitas agridoce e da sua quiche estranha, onde misturava caril com ameixas secas e natas e que me deixava a cozinha num estado lastimável

Lembro-me de, numa dessas viagens de regresso de Moledo, numa fase de esperança (ainda o David não partira) ter dito ao Manel que não aguentaria se tivesse que passar por tudo o que passara no início da doença e pelas notícias que os médicos me tinham dado, a sangue frio.
Nessa época, só de pensar na época já passada, me sentia sufocar e o sangue se recolhia.

Afinal, tudo se repetiu, por esta altura de fim de trabalho e início de férias.
As notícias foram ressurgindo, sempre terríveis, em catadupa como bátegas de água de tempestade … a marcar o fim do nosso tempo.
E estou imersa nesta fase de decomposição mental, em que vejo vazios os dias de Verão, pela primeira vez sem David
E recordo Barcelona, tão bela e tão trágica.




A INVISIBILIDADE DE DEUS


Dizem que em sua boca se realiza a flor
Outros afirmam:
a sua invisibilidade é aparente
mas nunca toquei deus nesta escama de peixe
onde podemos compreender todos os oceanos
nunca tive a visão da sua bondosa mão

o certo
é que por vezes morremos magros até ao osso
sem amparo e sem deus
apenas um rosto muito belo surge etéreo
na vasta insónia que nos isolou do mundo
e sorri
dizendo que nos amou algumas vezes
mas não é o rosto de deus
nem o teu nem aquele outro
que durante anos permaneceu ausente
e o tempo revelou não ser o meu

Al Berto

8 comentários:

Anónimo disse...

Isabel

É uma lição de vida e amor, este seu blog.
Mesmo sendo triste, mesmo nunca respondendo, directamente, a quem lhe escreve...
Claro que não responde.
Responderia o quê?
O que faz é mais do que isso...ensina-nos a estarmos atentos a quem amamos.
Só essa sua dedicação aos filhos, esse olhar atento, lhe permitem mostrar-nos o seu David - o "BOM".
E que bom é conhecê-lo e conhecê-la!
Só essa sua espantosa capacidade de amar, para além da imensa dor que sente, lhe permite expor-se, sem medo.
Obrigada pelo exemplo que nos dá.
E sorria, como o David faria!
Graça

Anónimo disse...

Passo, por aqui. Tornou-se um hábito.
O blog é bonito, triste mas, sobretudo, humano.
Revela-nos algo misterioso e desconhecido sobre a dor de perder um filho - a maior dor (dizem!)
Mostra-nos como se pode sobreviver, sem deixar de ter sensibilidade para a poesia, as imagens, a amizade e a procura de alguma felicidade...
Mesmo que essa "relativa felicidade" se encontre mergulhada na saudade.
É um blog a visitar, mas nem sempre a comentar, porque nos transcende, porque não sabemos como reagir a tanta mágoa e, às vezes, a tanta revolta.
É um luto difícil...
Andarei por aqui.
JSilva

Anónimo disse...

Sobre a "Invisibilidade de Deus"...Há pouco tempo,contaram-me a seguinte história,infelizmente verdadeira:Uma mãe viu morrer canceroso um dos seus filhos, criança, e,ainda amargurada com tão triste desenlace,o seu segundo filho juvenil sofreu,entretanto, um acidente e ficou tetraplégico...Quando lhe perguntaram se ainda permanecia crente em Deus,respondeu que sim,que era Ele quem lhe dava forças para resistir a tanta provação...Aqui há tempos,num programa televisivo,assisti a um debate sobre crianças autistas e fiquei fortemente impressionado quando um pai proclamou,pareceu-me de forma totalmente sincera,que ter tido um filho autista tinha sido uma benção do Céu,porque era a forma de poder amar um filho até ao Infinito...Há quem veja Deus nas situações mais inóspitas...António

Olga Almeida disse...

Ao ler este texto fiquei com a sensação que choro e rio ao mesmo tempo! É assim quase sempre! Rio ao lembrar do David e das coisas engraçadas que fazia e dizia, e choro quando entro na realidade e não o consigo ver.
Que saudades dos Davides que conheci!
Que saudades daqueles Davides que ainda podiam surgir! Seriam muitos concerteza.
Beijinho grande

Anónimo disse...

INVISIBILIDADE

Quando se chega ao que não se vê ...!?

Memórias, a dor, o que ainda não se consegue explicar, a Deus ...!

As memórias que nos mostram tantas facetas e que de tanto se metamorfosearem nos sentimos na obrigação de as agarrar, reter, fugindo-nos porém sempre entre os dedos e retendo-as sempre incompletas e mutantes por não se conseguir reconstituir em absoluto, porque tal implicaria torná-las vivas, presentes e por isso deixarem de ser aquilo que são, memórias ...

A História reconstitui-se mas para o fazer é preciso deixar sedimentar o tempo e apenas com o tempo ela se vai corporizando mas faltando-lhe sempre qualquer peça, elo que às memórias as bifurcam, deixando sempre um vazio, imenso campo de cogitação em aberto.

A dor que não se vê mas sente e que como a alegria que se traduz, por exemplo, num sorriso, de tanto se sentir é porque está lá, impossível de ser medida mas está lá e nos apela, chama, clama ou grita, exactamente, pelo que já cá não está!

O que ainda não se consegue explicar porque pela experimentação, recolha de dados e análise estatística ainda não se consegue ver ou traduzir em regra, sempre susceptível de ser quebrada, reequacionada, questionada de novo em campos em que ela também se bifurca infinitamente e sem retorno, numa ilusão falsa de exactidão que nos dá segurança, mas que nunca é absolutamente salvaguardada.

E Deus ...

Deus que como a alegria e a dor é incomensurável!

Eu acredito em Deus e se o vi, vi-O na própria palavra portuguesa que o nomeia.

Vi-O num jogo infantil com as letras que compõem a própria palavra Deus:

Deus também é um eu no meio de um d de divino ou diabólico e um s de sagrado ou de satânico;

Deus também é um eu dividido entre o bem e o mal;

Deus também é um eu pleno de arbítrio, permanentemente confrontado pelo dilema ético.

E aí, quando na própria palavra eu vi Deus, percebi também quanto nós, deuses menores ou Seus filhos adoptivos, arcamos com a responsabilidade de concorrer para o melhor ou para o pior, para o bem geral que logo se revê no Outro, em Si também, Minha Amiga, e quanto nas nossas mãos está, para concorrer para a Sua vontade que se não formos nós a implementá-La, ninguém nem Deus, poderá implementar por nós.

Concorrer para o bem geral!

E nessa implementação, a pacificação é fundamental, é vital (!) e conformados com o nosso destino, não que não nos devamos indignar ou revoltar mas na aceitação do que nos coube em sorte, destino nesse sentido (!) porque não sou determinista, concorrermos para o melhor que está sempre e sempre por refazer.

Cruz também são as encruzilhadas, os cruzamentos que se nos deparam no nosso caminho e que nos obrigam a decidir ir por aqui, por ali ou mais além, vindos de onde vimos, caminho esse que já não se pode refazer!

Pode-se apenas no reavivar das memórias, em sabê-las recantar e colorir sempre melhor, mas essa ode só pode ter por destino terreno o aliviar do vale de lágrimas que afinal existe mesmo.

Mas se o mundo, conformista, se limitar a ser um vale de lágrimas, onde sobrará força para o melhorar, isto é, o transformar em alegria também!?

Jaime Latino Ferreira
Estoril, 22 de Julho de 2008

Branca disse...

Olá Isabel,
Que belíssimos posts nos tem deixado, para além as palavras, o bom gosto da arte. Vinha para comenter o post anterior e encontrei logo outro, não o quis comenter levianamente e por isso voltei agora.
Continuo a ver algumas afinidades entre os meus filhos e o David. Se a mais nova, a Rita, é ligada às artes, teatro, música, Jazz, como já lhe contei; o mais velho, o Vasco, com 30 anos é ligado às filosofias orientais e às artes marciais, por isso os episódios que aqui dscreveu do David no Karaté me despertaram um sorriso...
Imaginei que tivesse estado para Moledo estes dias e pensei mesmo que se poder em Agosto hei-de ir lá, não de férias este ano, mas hei-de ir lá e vou de certeza lembrar-me muito do David...
Beijinhos

Anónimo disse...

O ar que respiramos também é invisível, mas é ele que nos mantém vivos.

"Breve Encontro

Este é o amor das palavras demoradas/
Moradas habitadas
Nelas mora
Em memória e demora
O nosso breve encontro com a vida"

Sophia de Mello Breyner Andresen

Manuela Baptista
Estoril 23 de Julho 2008

sofia disse...

Isabel
Não tenho palavras nem soluções sobre a falta de um Filho,certamente é uma dor que atormenta ,nem quero pensar,só escrevo para lhe dizer,que a sua escrita emociona-me muito e não desista de viver a sua vida.
Quem sou eu para dar palpites,mas o que escreve deixa-me assim ,próxima, com vontade de a abraçar.
Sofia