12 julho 2008

A nitidez do passado





12 de Julho de 2007...
E vejo tudo muito nítido.
Agora, o tempo vai voar e teremos apenas mais alguns dias bons.
No caderninho, aberto à minha frente, tenho o nosso itinerário passado.
Numa das páginas, colei o bilhete do concerto de Jazz, a que nos levaste, a mim e ao Manel, na noite de 12 de Julho.
Chegámos a Madrid, pela hora do almoço, idos de Paris, para uma consulta no Hospital de Houston, MdAnderson, marcada para o dia 13.
Estava um calor tórrido.
Comemos e fomos para o hotel. Estavas cansado, apesar de bem disposto com as opiniões de Paris.
Para a noite, foste, mais uma vez, o nosso guia.
Tinhas estado em Madrid, várias vezes, com o Teatro de Marionetas e com o Drumming.
Fomos comer numa esplanada da Plaza Central. Sugeriste, escolheste… Tudo era saboroso. Eu e tu bebemos “viño de verano” bem fresco, já que estavas de folga de tratamentos.
E rimo-nos e ouvimos-te. Gravámos na memória todos os pedacinhos.
E a música, sempre a música, a acompanhar os nossos passos…que nos levaram ao Café Central, para assistir a um concerto de Jazz. O meu bilhete é o nº 001750.
No fim, não resististe e, enquanto eu e o Manel esperávamos cá fora, tu foste "estabelecer contactos" com os músicos. Para os teus projectos sempre a fervilhar na tua cabeça.
Víamos-te, cá de fora, com a pose de quem controla bem a situação e sabe o que faz... E sabias!
E saíste entusiasmado, com mais cartões e um CD que te ofereceram para venda de espectáculos, em Portugal.

Foi tão bom, ter sido assim, guiado pela paixão da música e sempre a sonhar mais alto!
Aproveitámos bem todos os momentos.
Tenho-os , aqui, fechados na mão.
A mão é pequena mas o que lá guardo vale ouro.



Estou nu na sombra
Das questões difíceis da vida
Difícil e solitária.

As sombras têm horas dentro
De si.
E quanto mais tarde se faz
Mais ensombradas se tornam
Para quem as vê
Deitando-se por cima de si,
Escurecendo a vida…
Difícil e solitária
(Ária infindável e fugidia da sua harmonia)

A vida é como uma longa ária
Que, às vezes,
Foge da sua harmonia.

David Sobral

7 comentários:

Anónimo disse...

Tantos projectos, tanta vontade de viver, tanta esperança e tão pouco tempo que a partir de agora vai fugir tão depressa das nossas mãos.

Hoje foi impossível controlar as lágrimas e a enorme raiva contra o que nunca devia ter acontecido. Vai ser uma noite de insónias,meu querido David, pelas palavras da tua mãe vejo-te nitidamente pelas ruas de Madrid ...

Beijinhos da
Nini

Anónimo disse...

VULCÃO DE MEL

" A mão é pequena mas o que lá guardo vale ouro. "

E sendo a pequenez do oiro que lá guardo, na exiguidade da mão, pouco, se é menos do que a mão, é tanto, tanto (!) que se nela cabe a transcende, porque o oiro que lá guardo não tem preço e muito mais vale do que o vil metal.

Abro a mão e o oiro que lá está não tendo preço ou cotação logo se partilha e dá com o coração em brasa e cresce mais e mais sem ter razão ou toda tendo.

Dá-se o oiro que escondo na mão e perplexo constato que há uma mina, inesgotável e pronta a dar mais e sempre mais, memória fértil e mutante, cromática e reluzente!

Quanto mais escavo qual mineiro fotografado por um Sebastião Salgado, mais a dura luta do trabalho quase escravo se confunde com indescritível heroicidade anónima na épica batalha da sobrevivência.

E escavo, escavo e o oiro do metal incandescente brilha e não deixa que se apaguem as recordações que contínuas fluem como rio de águas incandescentes que à noite a iluminam e ao dia o transfiguram em lava doce e apaziguadora.

E escavo, escavo sem quartel ...

Jaime Latino Ferreira
Estoril, 13 de Julho de 2008

Anónimo disse...

Este é um blogue de Insubmissão perante a Morte e uma forma sumammente bela de o Amor de Mãe querer ir buscar de volta o seu filho à Eternidade...A Vida teria que estar moldada em moldes dominantemente perversos para não lhe conceder esse Retorno...António

Branca disse...

Olá Isabel,

Mais uma vez nos deixa aqui um belíssimo pedaço de vida e da vivência do seu amor de mãe. Mais uma vez nos dá a conhecer o David de uma forma tão nítida que nos parece mesmo estar a vê-lo nesse seu entusiasmo com que contacta os músicos e na forma como o observa do lado de fora.
Realmente esses momentos só podem ser ouro na sua mão fechada e música para o seu coração...
Bem haja o David por tão belos momentos que lhe deixou e que partilha connosco.
E sempre os bonitos versos dele a fecharem o seu texto...!
Beijinhos
Branca

Anónimo disse...

Boa noite.
Indicaram-se o seu Blog para cá vir. Porquê? Porque eu também perdi um filho. Uma filha. De uma forma assaz diferente, passei e passo pelo mesmo trajecto de desânimo, de quase coma emocional, um sentimento materno de culpa por não ter conseguido salvar a minha filha. Como se pudesse! Era pequenina, por isso tão entranhado o desejo de contacto físico e o sentimento de que fala (braços vazios) ainda mais acutilante. Recebi conforto de uma associaçao, em dar e receber. Por isso aqui vim, para lhe dizer que a associação "A Nossa Âncora" é constituída por pais em luto e pode obter informações dela na Internet (basta fazer uma pesquisa no Google por este nome). Pode trazer-lhe algum conforto, falar com alguém que fala a mesma língua, que atravessa diferentes estádios de "recuperação".
Um abraço,
Fátima..

Anónimo disse...

Isabel
Percebe-se nitidamente que o David não era "apenas" um filho.
Era O FILHO.
Mãe coragem, aceite o meu abraço, se é que este gesto lhe servirá de algo.

Fica, sempre, o meu gesto.

Obrigado

Anónimo disse...

Qualquer filho, seja 1 sejam 20, é sempre O FILHO, AQUELE FILHO.
Todos os netos, seja 1 sejam 7, é sempre o neto.
Todos são únicos e irrepetíveis.
Este chamava-se David.
Levou a parte da Isabel que nos fala neste Blog.
A outra tem que se aguentar, tem um filho e vai ter um neto.
As duas isabeis, a mãe do David e a mãe do "outro filho" vão acabar por se encontrar.
Sinto-o pela sua enorme força.
Conheço quem não foi capaz.
Mas a sua força é o Amor.
Que é imenso.