30 junho 2008

A casa dos sonhos




A pulsão que me traz aqui acorda comigo.
Às vezes, nem sei bem o que escrever. Saber, sei... mas pouco acrescentaria a tudo o que sinto.
A intensidade do que sinto aumenta, à medida do passar do tempo.
Ando devagar, com receeio de me perder.
Canso-me de vozes que me atordoam e olho sem perceber exactamente o significado do que vejo.
Por isso me quedo aqui, várias vezes ao dia. Este é o meu porto seguro, onde nada me é estranho, apesar de saber que nada do passado volta.
Encontro-me nas fotografias do David, nos sons dele e no que escrevia.
A vida, lá fora, é tão inesperada.
Aqui, existe um quarto chamado saudade, com o teu cheiro que persiste e é aqui que me resguardo.
Ainda não estou, inteira, pronta para o futuro.
E que medo tenho dele! Agora, sei (dolorosamente aprendido) que nada de muito bom o futuro pode trazer que não seja, mais dia menos dia, desfeito por uma rajada de vento agreste mais forte.
Fiquei assim, céptica e fechada neste casulo, onde construí o palco em que me movo e vivo.
Venho, de vez em quando, até à boca de cena...

Este é um dos textos do David que, hoje, voltei a ler, enquanto rabisco, com muita dificuldade, mais uma página do livro "Mamã, vamos dançar!"
Eu não falarei das facetas David. As minhas palavras dizem pouco... talvez as dele digam mais.
Preciso de tempo para as colocar aqui.




Autocarro de Sonhos
Todos os dias passava por ele. O autocarro 9 que tinha como destino Sonhos. A primeira vez que o vi, tinha eu uns singelos 10 aninhos, andava na quarta classe. Ainda me lembro, ia para a escola, como todos os dias, mas, nesse dia, tive que fazer um percurso diferente. Esse novo percurso fez com que eu me encontrasse com aquilo que viria a influenciar todo o meu percurso de vida. Aquilo que hoje sou devo-o em parte ao 9. A partir daquele dia passei a ir para a escola sempre por aquele caminho. Ao primeiro olhar, não acreditei mas, logo de seguida, vi que no letreiro do autocarro estava mesmo escrito “sonhos”. Todos os dias passava por ele; às vezes, até duas vezes no mesmo dia. Isto durou anos; mesmo quando eu já andava na faculdade, tentava passar pelo 9. Ainda hoje, o autocarro está na minha vida. No entanto, só fiz uma vez a viagem. Foi aos 18 anos, quando tirei o meu passe. Queria experimentar, assim como qualquer jovem quer experimentar um charro ou outra porcaria qualquer proibida; o desejo era o mesmo. Queria saber se algo poderia ocorrer numa viagem de um autocarro que tinha como destino uma localidade com um nome invulgar. Queria experimentar, porque sempre me deixei enlouquecer com os sonhos e com tudo o que eles representam. Queria viajar naquele autocarro, queria saber se, ao viajarmos nele, éramos mergulhados em sonhos inimagináveis, impossíveis, sonhos etéreos fora do contágio, da influência do real. A vida sóbria e real afecta os sonhos que todos temos; dá-lhes um toque mundano e banal. Eu não queria esses sonhos, esses podia eu ter à noite enquanto durmo, como todos. Não, eu queria outros sonhos, outras viagens. Nesse dia não tive aulas à tarde e podia muito bem ocupá-la como eu quisesse porque também não tinha de estudar. Era a altura perfeita para fazer a viagem do 9. Quando cheguei à paragem não tive de esperar, ele já vinha a caminho. Era previsível; eu já conhecia perfeitamente o horário do autocarro de sonhos. Estava extremamente nervoso, todos os meus movimentos eram percepcionados e sentidos; desde o subir para o autocarro até ao sentar num dos bancos. Vivi todo aquele momento, perfeitamente consciente e acordado. Cada segundo era precioso. Vivi aquela viagem com a mesma tensão que um condenado à pena capital vive os últimos momentos de vida. Durante toda a viagem estive sóbrio e não sonhei, penso eu. Ou então, sonhei exactamente comigo a fazer aquela mesma viagem de autocarro. Pensei nos sonhos e no sonhar, reflecti sobre tudo o que é onírico. Reflecti na necessidade de sonhar e largar, por momentos, a realidade que nos prende. Os sonhos são aquilo que nos torna únicos e individuais. Um sonho é composto não só de experiências reais desorganizadas como também de um toque pessoal da nossa inconsciência. E essa, é só nossa. Depois da viagem de ida e volta, cheguei à conclusão que para sonhar eu não precisava de nenhum autocarro, nem mesmo daquele. Percebi que para sonhar basta uma referência, algo que preencha a nossa vida. O 9 era apenas mais uma referência para sonhar como muitas outras coisas. Cada um de nós tem a sua referência, qualquer que seja, mas tem. Até pode ser a mesma para várias pessoas, porque o toque pessoal o permite. Quantas pessoas não haverá que viram o 9 passar pelas suas vidas? Devemos ter sempre uma referência. Não posso crer que haja alguém sem qualquer referência. Se houver, que viaje no 9. Para mim o 9 não foi só uma referência, foi uma influência avassaladora, um marco determinante, na minha vida. Graças a ele, hoje escrevo histórias, contos, experiências e, claro, sonhos. E tenho música dentro de mim. Costumo até dizer que sou um escritor de sonhos. Não seria nunca assim se não fosse o autocarro de sonhos.

David Sobral

Dezembro/1999

29 junho 2008



Sinto um sonambulismo e uma apatia estranhos.
Não reconheço a casa, nem os espaços em que habito.
Não tivémos tempo de criar rotinas ou raízes, aqui.
Não chegámos, sequer, a esvaziar os caixotes que trouxémos da casa antiga.
Ficaram encostados a um canto, na garagem.
Havia tempo.
..................
E tempo há; nós é que não.
E não me lembro do que se fazia nos meses de calor.
É o primeiro mês de Junho que passamos, aqui, sem ti.
Deste lado da secretária que era o teu, tento imitar-te os gestos, os olhares.
Crio as penumbras necessárias...ao resto da encenação.
Mas nada altera esta ausência de sentido que me aperta o coração





Mede com as mãos
o espaço
de uma vida.
Não sabe como se chamava,

quando viveu,
que idade tinha

quando amou pela primeira vez.

É pura matéria o que tem pela frente,
e o frio do osso entra por ela,
pedindo uma conclusão.

Mas
que pode ainda dizer?
Nenhuma certeza
nasce do pó;
e só um antigo
fogo
reveste de saudade
a penumbra
que a atormenta,

aquecendo-lhe o coração
onde pulsa o medo do mundo.

Nuno Júdice

Há um ano, mais uma vez, me disseram que não havia hipóteses, perante o PET que o David fizera.
Há um ano e mais uma vez, implorei que não fosse dito nada ao David, da forma como me fora dito a mim.
Pai e médico disseram-me que ele tinha que saber...
Saber que não havia esperança?
Mais uma vez, expliquei que não devia destruir-se, assim, o optimismo (ainda havia) de um rapazinho de 29 anos.
Esse rapazinho só tinha projectos e sonhos a que se agarrar. Não era casado, não tinha filhos, não tinha fortuna, não tinha burocracia a organizar... Vivia com a mãe.
E queria viver.
Tinha a música.
Tinha a luz.
Tinha espectáculos e palcos a iluminar
Nesse dia (hoje), fomos, mais uma vez, almoçar fora, no Golfe. Com relvado imenso à volta. Lá lhe disse as coisas, à minha maneira. Sempre com a boca seca, o coração a cavalgar e um sorriso, enquanto o olhava sem pestanejar.
O David confiava em mim; não queria saber mais nada.
Era altura de partir para o estrangeiro.
E fomos uma e outra e outra vez.
Não me arrependo de nada. Não me lembro de quase nada para além dele...
Tudo foi como tinha que ser para que o David mantivesse a esperança que nunca o abandonou.
Dizem-me que fui boa mãe!
E daí?
Continuo sentada ao lado desse rapazinho, a caminho doutra esperança, em cada avião que passa.




Não há lugar para mim
neste país de Inverno.
As mães cegaram em seus ventres
e cada homem abandona
a juventude na cidade ácida.

Tínhamos o movimento da Terra
e eu compreendia as coisas
como se absorve a luz com os olhos.
Existiam as tuas mãos.

Ana Marques Gastão

27 junho 2008



Foto de Cadaqués (Barcelona), muito apreciado pelo David.
Não chegou a voltar lá, como queria, em Agosto de 2007.

Estava cansado


E olho-me por cima do ombro…
Procuro-me no rasto que deixei e eis-me perdida num meandro de lugares distantes e difusos.
A estrada percorrida está pejada de destroços; de mim, de tempos antigos de menina, de sonhos que já não se concretizarão.
A vida é assim - refazer o presente com as sobras do passado.
Refazer?
E se não sobrou nada?
Tacteio numa promessa de paraíso perdido...



É preciso não esquecer nada:
nem a torneira aberta
nem o fogo aceso,

nem o sorriso para os infelizes
nem a oração de cada instante.

É preciso não esquecer de ver a nova borboleta
nem o céu de sempre.

O que é preciso é esquecer
o nosso rosto,

o nosso nome,
o som da nossa voz,
o ritmo do nosso pulso.

O que é preciso esquecer é o dia carregado de actos,
a idéia de recompensa
e de glória.

O que é preciso é ser
como se já não fôssemos,

vigiados pelos próprios olhos,
severos connosco,
pois o resto não nos pertence.

Cecília Meireles

25 junho 2008

Estranhas coincidências...



Ao longo do dia, escrevo, mentalmente, milhentas páginas desta casa.
Hoje, passado exactamente um ano, regressei ao IPO. Estranhas coincidências...

Quase tudo são lembranças de ti.
Um CD do Fausto a cantar "A explicação das flores".
As eólicas que giram no cimo do monte em frente ao pátio do Perrinchão, onde te tiraram a última fotografia, que guardo só para mim.
A escultura em ferro do D. Quixote que temos à entrada de casa, sonhador e utópico como tu.
A luz entrando pelas frestas das folhas das árvores do lado poente.
Quando o sol se vai deitando.
O azul do mar calmo semelhante ao de Creta e de que falavas num texto que enviaste para o "Público" e que te valeu um primeiro prémio.
Muitos orégãos na salada.
Os "pirilampos" de leds no jardim e que começam a brilhar quando escurece.
A guitarra, pousada, ao fundo da sala.
Mais música do Zé Mário Branco em "Do que um homem é capaz" ou da Lhasa ou da Nouvelle Vague ou de Bebo & Cigala ...
A voz que me chega do CD do teu programa de rádio "Jazz Faz Tarde", onde é apresentada Elliane Elias, Duke Ellington ou Carlos Barreto ou "a portuguesa Jacinta"...

Eu sei lá... um infindar de pequeninas coisas, gestos, sons (invisíveis a outros olhos) que vejo, filtradas pela saudade, e que não chamo, mas que se impõem como flecha certeira.
Hoje, são umas imagens; amanhã, serão outras.
Foi tão grande a perda e tamanho o amor!
Teria que não viver, não olhar, não ouvir para que a saudade não me atordoasse.

Mesmo maltratada pela vida, vivo ... presa ao que ainda existe de bom, na minha vida.
Há outra forma?



Finalement, finalement
Il nous fallut bien du talent

Pour être vieux sans être adultes

Jacques Brel

20 junho 2008

Percursos alternativos

Ando por caminhos diferentes.
Estou diferente. Sinto-o nitidamente no peso que carrego comigo e que me curva e me puxa os olhos para o chão que piso molemente.
Não me cruzo com ninguém; e, se cruzo, não reconheço porque tudo já foi e passou para uma outra dimensão.
Apesar do sol, há sombras dum espaço já sem tempo.
É a esse espaço esquecido no tempo que teimo em regressar, ao abrir as portas desta casa.



Curva

Antes não nos pesava

O passado,
colhíamos os dias

Ainda verdes,
a frescura da sua polpa

Na vontade dos nossos
Dedos.

Depois vieram os sinais
dos primeiros cansaços
sem remédio,

a noite fincou-se nas pedras,
fez-se de estorvos.

Aquilo que sobrou de ti
cabe-me nos bolsos
e é pouco
para as minhas mãos.

Rui Pires Cabral

19 junho 2008

Continuar a resistir.

Estamos em Junho, já não importa o ano...
É mês, sempre, de nascer um filho.
Foi mês outonal do outro filho enfrentar, corajosamente, mais um doloroso percurso, depois dum curto descanso de guerreiro.
Apertámos todos, ainda mais, os laços que nos queriam separar.
Tínhamos medos indizíveis, cruzares de dedos bem cerrados, atrás das costas...
Numa fúria e raiva de vencer!




A PRESENÇA DOLOROSA DO DESERTO


Teu nome é meu deserto
e posso senti-lo
incrustado
no meu próprio território
como uma pérola
ou um gesto no vazio
como o amargo azul
e tudo quanto há de ilusório.

Teu nome é meu deserto
e ele é tão vasto
seus dentes tão agudos
seus sóis raivosos
e suas letras
(setas de ouro e prata
nos meus lábios)
são o meu terço
de mistérios dolorosos.

(Micheliny Verunschk, publicado em Na Virada...)

18 junho 2008

8 meses



Continuo aqui.
Como poderia sair desta "casa", onde passo parte dos meus dias e onde regresso continuamente?
É aqui que todas as recordações permanecem intactas - os teus textos que revejo, os teus sons que distribuo pelos amigos, os meus próprios textos, as montagens de fotos que imprimo e guardo.
Como se te inventasse em nova vida, em tudo diversa da que foi.
Estou aqui, fechada com a outra parte que de mim se foi, e assim viverei...

A outra, a que ficou, anda cansada. Por vezes, quase a desistir duma vida em que não encontra sentido.
A outra, a que ficou, conta os dias.
Não retribui os olhares.
Esconde-se num silêncio cada vez mais pesado.
Talvez se trancasse em casa, se pudesse.
Desvia de si a atenção, falando muito e depressa (de qualquer coisa) para que os outros não tenham tempo de a olhar quando se instala um silêncio confrangedor e a boca lhe seca.
A outra, a que ficou, tem medo... um medo indefinido.
Esquiva-se, para ficar sozinha.
Inventa pretextos para adiar as rotinas da vida.
Anda anestesiada.
Percorre ruas e estradas num frenesim despropositado.
Procura (outras) razões (inventadas) para chorar e se indignar.
Tem sonhos sobre vidas que talvez tenha vivido mas de que não se recorda.
A outra, a que ficou, finge.


Esta, a que aqui está, nesta "casa", anda longe.
Senta-se em bancos de jardim de outros lugares distantes.
Continua a "fazer horas", à espera, enquanto dormes.
Mantem as janelas semi- cerradas; a "casa" na penumbra, para que nada te perturbe.
Está, aqui, neste cantinho.
Não te deixa só.
Passaram oito meses, desde que adormeceste.
Este é o teu sono mais longo...

17 junho 2008

Gostaria!


Salvador Dali
Há dias em que só me apetece fugir, abandonar tudo.
Gritar bem alto que não ando a fazer nada, que não quero pesar, que não precisam de olhar para mim nem de se preocupar.
Gostaria de poder ficar pequenina, tão pequenina...até que ninguém me visse.

Mas ainda não sou suficientemente egoísta!


CEDO OU TARDE


Devias saber que é sempre tarde que se nasce, que é sempre cedo que se morre. E devias saber também que a nenhuma árvore é lícito escolher o ramo onde as aves fazem ninho e as flores procriam.
Albano Martins

16 junho 2008

Para além da insónia


As minhas noites iluminam-se como palcos, quando me deito e a luz se apaga.
O actor principal permanece, ali, quieto e paciente ...até que o chame.
Levanta-se, então, de mansinho e vem, pé ante pé, convidar-me para dançar.
E eu levanto-me, devagarinho...



(Salvador Dali)

No campo, são as mesmas árvores;
no
céu, são as mesmas nuvens.
Outras árvores
caíram, outras nuvens passaram;
mas
o campo é o mesmo, e o céu não
mudou.
A sua natureza é esta: permanecer

dentro da própria mudança.

O homem que aqui esteve, porém, já

não é o mesmo. Quando olha para as árvores

que mudaram a folha, e para o céu onde

as nuvens sucedem às nuvens, não se

reconhece. O tempo do homem não se

renova, nem a natureza lhe ensina

como ser o mesmo quando tudo muda.

Por isso, o homem deita as árvores

abaixo, não olha para o céu, e anda em

frente como se o campo lhe pertencesse,

e não às aves que se abrigam entre

as folhas. O tempo do homem é não saber

do tempo, nem ouvir o canto das aves que

pertence a este céu que já não existe.


Nuno Júdice

15 junho 2008

Contornos indefinidos



Porque todas as recordações são a mesma recordação - memória dos teus dias – é aí que estou parada.
Procuro, nos olhares de quem me olha, um caminho possível, um gesto que me agarre ou um sorriso que me seja familiar.
Mas estão longe, só lhes vejo os contornos indefinidos.
Não os identifico, apesar de me terem sido familiares, em tempos.
Nada encontro desse lado do espelho, donde me olham de forma estranhamente estranha.
Aqui, onde me encontro, só creio no pó das estrelas que morrem e se transformam, nos espaços siderais e nas que renascem de cinzas lançadas ao mar.
Mas...
Assusto-me com as minhas próprias reacções que, às vezes, me parecem rudes.
Eu não era assim, despida desse manto de tolerância que nos cola aos outros e que nos inibe de dizer palavras que podem ferir – porque não são importantes.
Despida dessa máscara de delicadeza e compostura social...nem sempre me reconheço.
Será que incorporei a crueldade com que a vida me tem tratado?
Será essa a única forma egoísta de aligeirar o peso do doer que me sufoca?
Sinto-me confusa.
Aproxima-se mais um dia 18 e os sinais de fumo persistem.
A negrura da tua ausência, transformada em cinzas, não se dispersa no mar.
Flutua entre cá e lá, ao sabor das horas que me empurram.
As estrelas, essas, …. continuam a brilhar, altas e inatingíveis.
É para lá que olho, quando te procuro.
Sei que será em vão.
Mesmo assim...


UM DOS CAPÍTULOS

Ainda te falta
dizer isto:
que nem tudo
o que veio
chegou por acaso

Que há flores
que de ti
dependem,
que foste
tu que deixaste
algumas lâmpadas acesas.

Que há na brancura do papel
alguns
sinais de tinta
indecifráveis.

E que esse
é apenas um dos capítulos do livro
em que tudo se lê
e nada está escrito.

Albano Martins

13 junho 2008

Os passos bifurcam-se



Um destes dias, à tarde, recebi a visita de um amigo do meu filho, também chamado David(e).
Mais velho, mais experiente...igualmente sonhador e delicado.
Já nos conhecíamos das reuniões que o meu filho tinha com ele, aqui em casa. Já estava doente, já estava mais cansado. Mesmo assim, resistia e continuava a trabalhar, a iluminar os artistas no palco.
Emocionam-me as visitas, os mails, as mensagens dos amigos dele. Não o esquecem e eu fico um pouco mais reconfortada. Nessas ocasiões, quase sorrio, ao recordar com eles. Quase não choro.


Sensibilizou-me a gratidão que o Davide sente (presente!) por ti; pela oportunidade que lhe deste de ir para o Teatro da Guarda. Tinhas sido tu, o convidado; mas não aceitaste e passaste-lhe o convite. E ele foi.
E falou-me dos outros a quem deste o mesmo apoio - um amigo em Faro, o Eduardo em Lamego, a Joana com o Drumming, o Emanuel na Casa da Música...
Não guardavas nada para ti. Passavas.
Eras um coração de ouro, grande e generoso - raro nesse mundo do espectáculo.
E, quando, esses amigos me dizem estas coisas e te agradecem (através de mim), ainda hoje, fico, assim, sem jeito, sem palavras, sem saber o que derrotou esse bater forte do coração de "tourinho" e a força com que me apertavas a mão para me puxares para a luta e o sorriso do "abraço da noite".
Falo muito do "abraço da noite".
Faz-me muita falta esse "abraço da noite".
Depois, quando os teus/meus amigos partem, prometendo voltar porque se sentem mais perto de ti quando estão perto de mim, eu fico assim à toa, sem Norte dentro de mim.
Tu, pelo contrário, sabias sempre onde estava o teu "Norte".


A Isabel Alves Costa escreveu, quando se foi despedir: "Havemos, ainda, de concretizar os teus projectos cheios de entusiasmo. Até sempre."

O teu tio Tony disse "Querido Dabidum e amigão, quando leres estas palavras estarás aí, no céu, e nós aqui no inferno ads saudades que nos deixaste. Se não posso falar de justiça, também não relatarei o quanto para mim foste e representaste!
Tiraram-te a vida e, pela minha parte, perdi um enorme amigo.
Não sei se nem quando te vou encontrar...mas vai pagar esta tristeza em que nos inundaste! "

11 junho 2008

Junho -ainda ilusão



Tudo se comprime neste tão ínfimo espaço que é o meu sentir.
Tarda o encontrar um caminho mais seguro e claro por onde possa guiar os meus passos.
Para já e talvez para sempre (quem sabe!), a minha vida se resuma a isto - um fumo da dor que, inesperadamente, se instalou.
Talvez tenha que continuar a morrer de saudades cá dentro e esperar o que me couber, sem desejar nada.
Quero garantir que nada de ti se perca, nesta vertigem em que o tempo se transformou e em que te afastas, mais e para sempre.
Às vezes, dou por mim com lágrimas nos olhos, sem saber que estou a chorar.
E não é choro, é apenas o rio de dor a transbordar.
Estranho os destroços abandonados na estrada que, tão ausente de mim, percorri.
Como poderei compreender, um dia, que saíste?
E não regressas à noite?
Afinal, só assim se devia viver.

09 junho 2008

Impossível recuar!


Como pode ser este meu tempo o tempo real, se não houve tempo para escolher. Se repentinamente, tudo me foi imposto?
Nada foi depois como era antes.
Nada foi, nunca mais, fruto de decisões. Apenas um caminho se abria, sinuoso e sombrio, com percurso obrigatório. Clareiras, houve algumas! Mas rapidamente transformadas em pântanos onde um tropel de emoções se afogava.
E nunca mais... Nunca mais, uma vida a viver simplesmente; sem ter que, continuamente, olhar, ansiosa, para o reverso da medalha, antes de avançar, de dar o passo seguinte.
Passo, de qualquer maneira, obrigatório! Sem margem para adiar ou não querer.
É terrível viver assim.
Transforma-se definitivamente a percepção que temos do mundo, embora, na aparência, mas só na aparência...tudo continue, aparentemente igual.
E penso, contínua e constantemente, no que foi a nossa vida. Percorro, novamente, todos os passos dados.
E recuo e avanço para recuar e, de novo, avançar pelo sulco, já traçado pelos sempre mesmos passos gastos, já mil vezes, dolorosamente, repisado.
E não há cansaço que suspenda este percurso...
Talvez procure, inutilmente, apagá-lo.
Não da minha memória, onde esses dias e imagens se encerraram, mas apagá-los no sentido de, por artes de uma magia impossível qualquer, regressar atrás e tudo reinventar e pudéssemos ir por um caminho alternativo e tudo fosse diverso.
Um caminho, onde nada tivesse terminado, ou mesmo, nem sequer, começado.
Porque depois de começado!..

A vida continua assim... mutilada, sempre ligada ao que podia ter sido e não nos foi permitido.
Era-se e, num tremer de pálpebras, num não tempo, já não se era.
E, cada dia, se repete o já acontecido ...
Que se fica só e, novamente, abandonada.

06 junho 2008

Vi melancias e lembrei-me de ti.


Tudo revive em mim, cada dia.

Não sei que urgência te chamou. Ainda não desvendo razões.
Guardo chaves nas tuas gavetas. Não sei que portas abriam... E para quê?
Se as portas que abrias, não existem mais. Porque lá não vais.

Nada se apaga nem se torna suave na memória, como alguns querem que eu creia.
No princípio, olhar para fotografias parece trazer um alívio ligeiro, tal como ouvir a música habitual.
Como se alguma coisa permanecesse.
Ao fim de um curto espaço de tempo, tudo se torna novamente ausência. São apenas molduras espalhadas pela casa; apenas música.
E a sensação de perda e afastamento vão pesando e pesando e pesando mais.
Não há retorno. As portas fecharam-se. Se fiquei dentro ou fora, não sei.
Nem sei o que é dentro ou fora; vivo num espaço ausente, em contínuo movimento de fuga.
Tudo me diz "Não podes continuar aqui, tu tens que seguir...".
Para onde? Se não encontro o que perdi.
Hoje, vi melancias e regressei a ti...

Parte-se
como uma ânfora desmedida,

o meu coração.

É Junho,
começam a abrir-se as flores da melancolia.
Desço os degraus da casa e da terra.
Fecho os olhos
E por dentro da sua cor,
por dentro da sua luz verde,
esses olhos partem para o mar,
quando o crepúsculo cai do outro lado dos espelhos.

Parece que os girassóis
se erguem na berma
das estradas.
Parece que as cegonhas dormem.

Nem tu,
cujo rosto vi desenhar-se tantas vezes
no
rosto da lua,
me poderá salvar.


José Agostinho Baptista

03 junho 2008

Fecho portas, abro portas, fecho portas, entreabro portas.
É este o meu quotidiano.
Estas portas isolam os compartimentos em que me encontro repartida. Raramento me sinto inteira, em cada um dos espaços em que me desdobro. Acho, mesmo, que ainda não tenho consciência de mim, do meu corpo, do meu "eu".
Vou sendo
O esforço e energia que gasto em manter-me inteira, aos olhos dos outros, desgasta e chego, à noite, exausta.
O pôr-do-sol vai aumentando a minha nostalgia.
Muitas vezes, me apetece sair da escola e não voltar.
Mas faria o quê?
O que sempre faço quando a saudade me atordoa - ver fotografias, ouvir as mesmas músicas, escrever sobre o David, ler poemas em que sinta retratadas as minhas emoções mais violentas.
São os poetas os intérpretes da vida, no que esta tem de fugaz, arrebatador e abandono às dores para as quais não há remédio.
Mas resisto... e dou as minhas aulas da noite.
Os alunos (pais e mães como eu) olham-me com doçura. E trabalhamos, com serenidade e seriedade.
Dizem-me que sou discreta no meu sofrer, que não aguentariam perder um filho...
Que mãe poderia dizer outra coisa?
Não se aguenta...mas há outros, outro filho, um marido amigo, uma nora, um neto...que esperam por mim...
Tento sorrir-lhes e digo que é difícil. Mas avançamos e obrigam-me a prestar-lhes atenção. É bom trabalhar com eles. Acho que é um sentimento recíproco.
Nessas alturas, tento trancar as outras portas para não desanimar e não desistir.
Mas, ao passar pelo portão da escola, que se fecha, já a porta do David se encontra escancarada e, aninhados, aguardando atrás desta porta, estão a saudade, os sons do passado e os medos que, logo, entram, mal vislumbram uma fresta por onde passar.
Instalam-se até recomeçar novo dia.
Afundo-me no assento do carro, braços indolentes, apatia por dentro.
Meto o CD "Resistir é vencer". O José Mário Branco canta "Do que um homem é capaz" .
Era uma das canções preferidas do David. Muitas vezes, a cantámos juntos, cada qual em sua secretária, frente a frente.
Sem interromper o trabalho.

Regresso, sem energia.





DO QUE UM HOMEM É CAPAZ
AS COISAS QUE ELE FAZ

P'RA CHEGAR AONDE QUER

É CAPAZ DE DAR A VIDA

PARA LEVAR DE VENCIDA
UMA RAZÃO DE VIVER

A VIDA É COMO UMA ESTRADA

QUE VAI SENDO TRAÇADA

SEM NUNCA ARREPIAR CAMINHO

E QUEM PENSA ESTAR PARADO

VAI NO SENTIDO ERRADO

A CAMINHAR SOZINHO


VEJO GENTE CUJA VIDA

VAI SENDO CONSUMIDA

POR MIRAGENS DE PODER
AGARRADOS A ALGUNS OSSOS

NO MEIO DOS DESTROÇOS

DO QUE NUNCA VÃO FAZER


VÃO POLUINDO O PERCURSO

CO' AS SOBRAS DO DISCURSO

QUE LHES SERVIU PR' ABRIR CAMINHO

À CUSTA DAS NOSSAS UTOPIAS

USURPAM REGALIAS

P'RA CONSUMIR SOZINHO


COM POLÍTICAS CONCRETAS

IMPÕEM ESSAS METAS

QUE NOS ENTRAM CASA DENTRO

COMO A TRILATERAL

CO' A TRETA LIBERAL

E AS VIRTUDES DO CENTRO


NO LUGAR DA CONSCIÊNCIA

A LEI DA CONCORRÊNCIA

PISANDO TUDO P'LO CAMINHO

P'RA CASTRAR A JUVENTUDE

MASCARAM DE VIRTUDE

O QUERER VENCER SOZINHO


FICAM CÍNICOS, BRUTAIS
DESCENDO CADA VEZ MAIS

P'RA SUBIR CADA VEZ MENOS

QUANTO MAIS O MAL SE EXPANDE

MAIS ACHAM QUE SER GRANDE
É LIXAR OS MAIS PEQUENOS


QUEM ESCOLHE SER ASSIM,

QUANDO CHEGAR AO FIM

VAI VER QUE ERROU O SEU CAMINHO

QUANDO A VIDA É HIPOTECADA

NO FIM NÃO SOBRA NADA

E ACABA-SE SOZINHO


MESMO SENDO OS PODEROSOS

TÃO FRACOS E GULOSOS
QUE
PRECISAM DO PODER

MESMO HAVENDO TANTA GENTE

P'RA QUEM É INDIFERENTE

PASSAR A VIDA A MORRER


HÁ PRINCIPIOS E VALORES

HÁ SONHOS E HÁ AMORES

QUE SEMPRE IRÃO ABRIR CAMINHO

E QUEM VIVER ABRAÇADO

À VIDA QUE HÁ AO LADO

NÃO VAI MORRER SOZINHO

E QUEM MORRER ABRAÇADO

À VIDA QUE HÁ AO LADO

NÃO VAI VIVER SOZINHO


José Mário Branco, in Resistir é Vencer, 2004