07 maio 2008

Repetir os passos


Não basta estar-se grata. É preciso dizê-lo, claramente, às pessoas.
Hoje, acordei decidida a fazer o que tinha em mente há muito tempo - visitar todos os que ajudaram e gostaram do David, durante as suas muitas e longas idas ao Hospital de Santo António.

Já não entrava pela porta das consultas externas que me levavam ao Hospital de Dia, desde o dia 11 de Outubro.
Regressava sobre os meus próprios passos, marcados nos passeios, de tanto os repisar. Com um aperto no peito, mas decidida.
Há coisas que não podem deixar de ser feitas, por mais doloroso que seja recordar e entrar no sítio, onde vi o meu filho, pela última vez.
Não houve problemas à entrada. Todos os seguranças se lembram de mim e do David.
Deixaram-me entrar,...com uma palmadinha no ombro.
Levava uma enorme taça de mousse de chocolate que fiz para todas as enfermeiras do serviço de quimioterapia, tal como levava bolos, muitas vezes, quando o David ia fazer tratamentos e eu pedia que o distribuíssem por elas e pelos doentes que lá estavam.
Para muitos, eu era a mãe daquele menino que lhes levava uma fatia de bolo.
Alguém me perguntou, uma vez - "A senhora é que é a dos bolos? Ainda há uma fatia para mim?"
Foi, portanto, às enfermeiras, excelentes profissionais daquele sector, que me dirigi. Devo-lhes toda a dedicação, boa disposição e ternura com que trataram o meu filho. E foi isso que lhes fui dizer. Algumas tinham lágrimas nos olhos, outras deram-me um abraço apertado.
A maior parte delas - a Joana, a Mª João, a Isabel, a Ana... - são quase tão jovens como era o David e criaram com ele laços de muita empatia. Trocavam opiniões sobre música ou espectáculos e punham nos ouvidos os auriculares do David, curiosas quanto à música que ele ouvia, enquanto o tempo passava.
As que puderam ainda o foram ver ao 4º piso, onde o meu filho mais novo já "dormia".
Têm um lugar especial no meu coração e foi isso que quis que soubessem.

Visitei, também, o médico oncologista do David. Apesar de ele nunca lhe ter escondido a gravidade da doença, não lhe destruía a esperança. Também eu lho suplicava, constantemente.
Um rapazinho de 28 anos? A certeza da morte destrói. Deixá-lo viver e fazer projectos
Sei que o médico fez todos os possíveis ao seu alcance para o salvar.
Também eu fiz! E nada consegui... Portanto, não posso guardar qualquer tipo de ressentimento.
Apesar de as nossas últimas conversas terem sido devastadoras... estou-lhe grata também.
Há situações que ultrapassam o humanamente possível. E ele é um homem bom, numa área desgastante, para quem não é fácil enfrentar aqueles que já vão um pouco derrotados e depositam nele a última esperança. Carrega, muitas vezes, nos ombros o prenúncio da "morte anunciada". Dei-lhe um grande abraço e agradeci-lhe.

Visitei, por fim, a cirurgiã que, no início de todo o processo, me deu a mais terrível notícia que se pode dar a uma mãe.
Alguém tem que a dar...
Foi com ela que passei mais tempo. Tinha admiração genuína e carinho pelo David, sentimentos retribuídos pelo meu rapazinho, também.
Foi de uma doçura extrema, sempre.
Estabeleceram laços de muita cumplicidade e humor - ouvia-lhes as gargalhadas, quando ele queria entrar sozinho na consulta e eu ficava no corredor, à espera. Ria das "piadas" do David. Admirava a sua inquebrantável vontade de viver e o brilhozinho dos olhos.
Desde que o David foi internado para já não sair, foi visita diária. E sorria-lhe abertamente; sabia que o David confiava nela.
Quando o fim se foi aproximando, foi-me explicando, meigamente, como tudo se ia passar - um deslizar suave, sem dor, sem sofrimento... Adormecer.
Eu sabia que estrada não tinha saída, mas o único acto de amor e de coragem que, ainda, me restava era desejar isso para o meu filho. Que fosse assim! E foi... quero acreditar.
Por isso, pude sorrir ao David, até ao fim...
E fui dar-lhe, hoje, um abraço.

2 comentários:

Olga Almeida disse...

Sempre que leio o que escreve há um nó que se aperta na garganta, mas mesmo assim, gosto de vir sempre aqui.
Apesar da vida curta do David, foi muito intensa e com muita magia. É confortante saber a forma como o David foi acarinhado, pelas pessoas que conseguiram CONHECER o David.
Beijinhos

Anónimo disse...

Grande coragem que revelas.
Uma atitude que de certo encheu de orgulho e esperança muitos dos que te amam.
Hoje a estrela do David brilhou intensamente cheia de amor por ti.
Fizeste a mousse de chocolate original ou a receita mais light!?
;) Beijinhos da Nini